Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 29(4), e290408, 2019
Humanização em saúde e reforma psiquiátrica: discussão da obra O Alienista entre pessoas com quadro psiquiátrico grave
Maria Silvia Motta Logatti, Licurgo Lima de Carvalho, Viviane Cristina Cândido, Dante Marcello Claramonte Gallian
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COMO CITAR:
LOGATTI, MARIA SILVIA MOTTA et al . Humanização em saúde e reforma psiquiátrica: discussão da obra O Alienista entre pessoas com quadro psiquiátrico grave. Physis, Rio de Janeiro , v. 29, n. 4, e290408, 2019 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000400606&lng=en&nrm=iso>. access on 02 Dec. 2019. Epub Nov 25, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312019290408. |
RESUMO
O artigo apresenta os resultados de uma investigação realizada junto a pessoas com quadro psiquiátrico grave de um grupo psicoterapêutico. Partindo da metodologia do Laboratório de Humanidades (LabHum), foram realizados 11 encontros para a discussão da obra O Alienista. Das 22 pessoas que participaram da dinâmica, 14 eram usuários em sofrimento mental. Posteriormente, foram realizadas seis entrevistas de História Oral de Vida, analisadas pela Imersão/ Cristalização, técnica inspirada na Fenomenologia Hermenêutica. Os eixos temáticos encontrados foram loucura, estigma, formas de tratamento, ciência, poder e o LabHum. A experiência do LabHum mostrou que este é um espaço com efeito terapêutico, promovendo entre os participantes uma maior compreensão de suas histórias de vida e do lugar que ocupam na sociedade, através da experiência do difuso e do indeterminado, algo que a literatura proporciona. O estudo apontou para a pertinência do LabHum enquanto uma possibilidade terapêutica que é capaz de contribuir e agregar com as formas existentes de tratamento, em consonância com valores e diretrizes da Reforma Psiquiátrica. Palavras-chave: saúde mental, humanização em saúde, literatura, reforma psiquiátrica e loucura.
ABSTRACT
The article presents the results of an investigation conducted with people with severe psychiatric condition in a psychotherapeutic group. Based on the methodology of the Humanities Laboratory (LabHum), 11 meetings were held to discuss the novel The Alienist. Of the 22 people who participated in the dynamic, 14 were users in mental distress. Subsequently, six interviews of Oral History of Life were conducted, analyzed by Immersion / Crystallization, technique inspired by Hermeneutic Phenomenology. The thematic axes found were madness, stigma, forms of treatment, science, power and the “LabHum”. LabHum's experience has shown that this is a space with therapeutic effect, promoting among participants a greater understanding of their life stories and their place in society through the experience of diffuse and undetermined, something that literature provides. The study pointed to the relevance of LabHum as a therapeutic possibility that is able to contribute and aggregate with existing forms of treatment, in line with values and guidelines of the Psychiatric Reform.
Keywords: mental health; humanization in health; literature; psychiatric reform; madness
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo apresentar os resultados de um estudo realizado junto a pessoas com quadro psiquiátrico grave de um grupo psicoterapêutico, e partiu de uma pesquisa de doutorado desenvolvida na Unifesp que objetivou investigar se o Laboratório de Humanidades (LabHum) do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da Unifesp teria efeito terapêutico sobre seus participantes. Esta atividade surgiu de forma experimental na primeira década dos anos 2000 e atualmente apresenta-se como uma proposta de formação humanística e humanização em saúde, a partir da experiência estético-reflexiva com a leitura e discussão de clássicos da literatura mundial (BITTAR; GALLIAN; SOUSA, 2013; LIMA et al., 2014; SILVA; SAKAMOTO; GALLIAN, 2014; CARVALHO, 2017; GALLIAN, 2017).
O LabHum surgiu no cenário do aparecimento da Política Nacional de Humanização (PNH) (BRASIL, 2004). A PNH se apresentou como resultado de uma série de iniciativas e programas que vinham sendo desenvolvidos desde a década anterior. A busca era pela organização e promoção de boas práticas e atendimento humanizado no Sistema Único de Saúde (SUS), frente à desumanização sentida tanto pelos usuários quanto pelos profissionais da rede (DORICCI; LORENZI; PEREIRA, 2016). A PNH reafirmou a necessidade de se investir na qualidade do cuidado, e não apenas na expansão da rede e do acesso (FERREIRA; ARTMANN, 2018).
Ayres (2009) aponta para a amplitude e diversidade da compreensão do termo humanização e define o ideal deste como um compromisso das tecnociências da saúde com a colocação em prática de valores relacionados à felicidade humana, democraticamente validados como “Bem Comum”. Nesta direção podemos pensar na humanização como o desenvolvimento de ações e atitudes que redundem numa melhoria das relações dos profissionais de saúde entre si e destes com seus pacientes, o que implica maior respeito, consideração, atenção, enfim, uma maior humanidade. Para que isto aconteça, tanto aspectos científico-tecnológicos quanto relacionais devem ser levados em conta e o paciente deve ser tratado como um todo.
Se é isto que se espera da atuação dos profissionais de saúde, faz-se necessária uma formação que contemple todos esses aspectos. É notável o quanto os cursos de saúde passaram a focar quase que exclusivamente no ensino do aparato técnico-científico, deixando muitas vezes de lado espaços para a discussão e reflexão a respeito das questões humanas essenciais, como as emoções, os sentimentos e a finitude, por exemplo (GALLIAN, 2017).
Nessa perspectiva, o LabHum se propôs como um dispositivo que tem o objetivo de transformar as práticas dos profissionais de saúde já no período de formação, ao incluir um espaço em que as questões humanas e relacionais possam ser discutidas e compreendidas. Os participantes da dinâmica revelam frequentemente que a experiência de participar ocasiona mudanças na maneira de encarar o mundo, a si mesmo e o outro. Essas transformações refletem também no modo de agir, de trabalhar e apontam claramente para um efeito humanizador (BITTAR; GALLIAN; SOUSA, 2013; LIMA et al., 2014; SILVA; SAKAMOTO; GALLIAN, 2014; CARVALHO, 2017; GALLIAN, 2017).
Com o intuito de ser uma dinâmica que promove a humanização, o LabHum contempla não somente habilidades cognitivas e técnicas, mas as três dimensões essenciais da experiência humana: a afetiva, a reflexiva e a volitiva ou atitudinal (GALLIAN, 2017). A partir da experiência de leitura e discussão dos clássicos da literatura mundial, os participantes são interpelados afetivamente pela obra e pela opinião dos outros sobre esta, e podem refletir a respeito destes afetos e pensamentos e, por fim, repensar e até mudar suas atitudes frente às diversas situações cotidianas e no trabalho.
A humanização está intimamente ligada a uma capacidade de se relacionar com o outro e com a experiência humana. Para Coelho (2001), diferentemente do conhecimento técnico-científico que conta com barreiras bem delimitadas entre o que é certo ou errado, a fronteira entre a maioria das coisas que dizem respeito ao ser humano em sua vida diária é difusa e indeterminada. A postura então requerida para lidar com esta realidade complexa exige um pensamento do tipo prismático, que o autor denomina de cogito prismático. A imagem de um prisma revela facetas tão precisas ou imprecisas quanto os feixes de cores que decompõem um raio de luz. Ao olhar para este raio, por exemplo, ficamos incertos sobre em que momento começa o feixe vermelho e termina o laranja.
A literatura é um modo de pensamento prismático. Na obra de ficção, os limites entre as coisas são difusos, e ao entrar em contato com esta experiência o leitor pode ganhar a capacidade de lidar melhor com a indeterminação e a difusão, renovando assim sua vida sensual e emocional, adquirindo uma nova consciência (COELHO, 2001). Mas é preciso estar atento ao fato de que para o pensamento prismático as distinções continuam sendo feitas, pois o feixe de luz branca que penetra o prisma não sai do outro lado tão branco quanto entrou, já que uma decomposição ocorre, significando que uma análise se fez. A diferença é que todas as fronteiras são mutuamente complacentes, contribuindo para um pensamento menos rígido e excludente do que antes.
Ao exercitar o pensamento do tipo prismático, o LabHum contribui para que aconteça a “ampliação da esfera da presença do ser”, expressão que Coelho (2001) tomou emprestada de Montesquieu (2005), promovendo assim a humanização, resultante desta ampliação provocada pela discussão literária. O LabHum suscita uma experiência que envolve e mobiliza o ser humano em todas as suas dimensões essenciais e que conflui para uma ampliação do conhecimento da experiência humana e, portanto, da esfera da presença do ser, podendo levar a um autoconhecimento, contribuindo para uma revisão de perspectiva, gestos e atitudes, não apenas na vida profissional, mas na vida como um todo.
Assim, a partir dos resultados observados no LabHum, os impactos positivos da literatura também foram atestados entre os estudantes e profissionais da saúde, consolidando-se como uma potente forma de humanização, ao partir do pressuposto de que a formação em saúde também deve encontrar um equilíbrio e contar com o ensino das últimas inovações tecnológicas, mas sem abrir mão de difundir valores e questões essencialmente humanas que dizem respeito aos aspectos relacionais.
Um mesmo remédio para profissionais e usuários?
É importante ressaltar que, até agora, o LabHum tinha sido pesquisado somente no contexto da formação de graduandos e profissionais da saúde. No presente trabalho, objetivamos investigá-lo como espaço terapêutico para pessoas em sofrimento mental, ou seja, passou-se dos profissionais para os usuários, entendidos como protagonistas dos serviços. O estudo consistiu na aplicação da metodologia do LabHum junto a pessoas com quadro psiquiátrico grave de um grupo psicoterapêutico, com a leitura da obra O Alienista, na qual, como afirmou Amarante, “Machado de Assis supera todas as expectativas com reflexões e críticas ao modelo científico da psiquiatria que são ainda absolutamente atuais e pertinentes” (AMARANTE, 2007, p.115).
Apesar de a distância parecer enorme, é possível afirmar que algumas pistas já traçavam o caminho para esta possível transposição. Um indício estava nos resultados que Gallian, Pondé e Ruiz (2012) obtiveram ao analisar as características da modernidade e chegarem à conclusão de que o fenômeno da desumanização dos profissionais da saúde estava vinculado a um fenômeno mais amplo, que culminava na desumanização da sociedade como um todo, e que também gerava inúmeras patologias psíquicas. Sendo assim, se o LabHum poderia ser utilizado no âmbito da humanização do profissional da saúde, a questão de aplicá-lo como espaço terapêutico pareceu pertinente. Ademais, do ponto de vista empírico, Gallian (2017) afirma que grande parte dos participantes do LabHum relatava sentir um efeito terapêutico ao participar da dinâmica estético-reflexiva.
No entanto, foi preciso estar atento para o fato de que o uso da arte como instrumental terapêutico já tinha uma história no cenário do tratamento da saúde psiquiátrica no Brasil. Nise da Silveira pode ser considerada uma das pioneiras neste aspecto, ao desenvolver outra abordagem frente ao adoecimento mental, contrapondo os métodos agressivos de contenção vigentes no início do século passado (eletrochoques, isolamento) à possibilidade de expressão da loucura e de sua cura através da arte (SILVEIRA, 2015). Mais tarde, a luta antimanicomial contribuiu para que esta transformação de eixo no tratamento psiquiátrico se desse de maneira mais efetiva no território nacional.
Para Luchmann e Rodrigues (2007), este movimento começou com a abertura do regime militar. A partir daí surgiram as primeiras manifestações na área da saúde. No ano de 1976, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e o Movimento de Renovação Médica (REME) começaram a funcionar como espaços de discussão e produção de pensamento crítico na área. No interior destes dois setores, surgiu o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, que vai denunciar abusos na assistência psiquiátrica, que incluía práticas de tortura, fraude e corrupção.
A partir destas discussões, instala-se o lema do movimento: por uma sociedade sem manicômios, compreendendo a loucura para além do limite assistencial, corroborando um amplo processo de Reforma Psiquiátrica (RP).
Para Silva e Trajano (2012), a PNH e a RP são frutos de uma mesma discussão e encontram suas raízes na ética em defesa da vida. Neste ponto, encontra-se uma nova confluência para a presente transposição; o debate que deu origem à reforma psiquiátrica foi o mesmo que produziu os fundamentos para a política de humanização em nosso país. Assim, experiências de cuidado em saúde mental na lógica da clínica antimanicomial acabaram trazendo uma reflexão sobre a humanização do cuidado ao derrubar muros, buscar liberdade e a defesa dos direitos dos sujeitos com sofrimento psíquico.
Se a RP começou por uma intensa busca de desinstitucionalização, atualmente a assistência psiquiátrica clama por ações ainda maiores e, para Amarante (2007), seu atual desafio é superar a visão que reduz o processo à mera reestruturação dos serviços. Segundo Amarante e Nunes (2018), a RP tem como objetivo a construção de um novo lugar social para a loucura, no qual os protagonistas não se identificam pelo diagnóstico psiquiátrico ou psicopatológico, mas sim pela afirmação de direitos de cidadania, rompendo com a visão dominante na história da psiquiatria no Brasil.
As principais rupturas dizem respeito ao deslocamento da ideia de doença mental como incapacidade e inferioridade; à crítica do discurso científico e técnico como lugar da verdade; à crítica da noção de arte e cultura somente como meios terapêuticos.
Nos últimos dois séculos, a loucura passou a ser considerada como espaço da “desrazão”, e diferentes dispositivos terapêuticos foram criados com uma proposta de “dobrar o alienado à razão”, como se a subjetividade do louco não fosse própria e decorrente de sua história de vida, mas fruto de uma doença que deve ser curada (FOUCAULT, 2003; TORRE; AMARANTE, 2001). A ciência deve então dizer como é correto “se comportar” e as diferentes formas de terapia devem encontrar um caminho para fazê-lo. Neste cenário “terapêutico”, a arte e a cultura poderiam até ser um caminho. Conceber a arte e a cultura para além de um potencial estritamente terapêutico significa assumir sua dimensão de produção de sentido da vida.
Para Portugal, Mezza e Nunes (2018), a arte aumenta significativamente o empoderamento, a inclusão social e a saúde mental. Dentro desta perspectiva, o objetivo do LabHum enquanto espaço terapêutico não foi pensado enquanto uma via para a terapia, mas enquanto lugar da experiência de fruição artística em si, onde as pessoas pudessem desfrutar da literatura e de todo o seu potencial, dentro de um espaço de acolhimento.
A cura deve ceder espaço à emancipação, produzindo autonomia e cidadania ativa, descontruindo a relação de tutela e o lugar de objeto que captura a possibilidade de ser dos sujeitos (AMARANTE, 2007; AMARANTE; NUNES, 2018).
Desenho do estudo
De acordo com a metodologia original, os ciclos do LabHum são semestrais e acompanham o modelo acadêmico, com cobrança de presença e avaliação. Uma vez escolhida a obra, esta deve ser lida previamente por todos. A metodologia conta com três fases: as histórias de leitura, o itinerário de discussão e as histórias de convivência (GALLIAN, 2017).
Na primeira fase, os leitores têm que contar, de maneira simples e franca, como leram a obra literária, sobretudo quais foram os afetos, ideias e questionamentos que surgiram. A busca é para que os participantes possam viver a experiência estética de maneira mais plena possível, desfrutando da obra de acordo com aquilo que Bachelard (2000) chamou de “leitor feliz”. Ou seja, como quem vai brincar e se embrenhar numa aventura que envolve e rapta o leitor, lançando lhe numa outra dimensão de espaço e tempo diferente daquela que ele vive cotidianamente.
O itinerário de discussão é a fase mais longa da metodologia, e chega a durar vários encontros, dependendo do tamanho da obra. É nesta fase que se desenvolvem as discussões, girando em torno da história e dos personagens.
A terceira fase tem como objetivo fechar o ciclo. Nesse encontro, cada participante deve fazer uma análise sobre a experiência que vivenciou nas fases anteriores e trazer por escrito um relato desta experiência.
No presente estudo, algumas modificações precisaram ser feitas, uma vez que se tratava de um contexto consideravelmente diferente do âmbito formativo. Não foi cobrada uma leitura prévia da obra e esta foi feita em conjunto. No entanto, o “espírito do leitor feliz” foi mantido, e os participantes eram orientados a falarem a respeito de sentimentos e ideias que surgiram na leitura do texto. Além disso, não foi pedido um relato por escrito para a fase final, e os participantes o fizeram oralmente.
Foram realizados 11 encontros, sendo um para a apresentação do projeto, nove para o itinerário de discussão e um para histórias de convivência. O estudo teve duração de três meses. A pesquisa foi realizada com o Grupo Vida, grupo terapêutico que começou em 2001 com oito pacientes psicóticos, visando buscar uma melhoria na qualidade de vida e reintegração psicossocial (ALBINO, 2013). Atualmente, essa atividade faz parte do trabalho social e gratuito de uma escola de psicanálise e conta com a assistência de sete psicoterapeutas vinculados que são professores da instituição e participam de suas atividades sociais. O acesso para conhecer o grupo como paciente é livre; no entanto, para continuar a frequentar é preciso estar em um acompanhamento psicoterapêutico e psiquiátrico individual que a escola ajuda a encontrar, caso necessário. Foi feita uma parceria para o desenvolvimento da atual pesquisa, sendo válido ressaltar que o Grupo Vida já havia feito parcerias com outros pesquisadores, tendo realizado oficinas de máscaras e até um documentário premiado.
No total, 22 pessoas participaram dos encontros; sendo 14 usuários em sofrimento mental, sete psicoterapeutas vinculados à escola e uma pesquisadora. Abaixo um quadro com informações dos usuários, tendo em vista que o artigo visa analisar somente a participação destes.
NOME | SOFRIMENTO MENTAL | GRUPO VIDA Paciente desde: | NÚCLEO FAMILIAR TRABALHO | ESTUDO | FREQUÊNCIA Número de Encontros: |
RICARDO 34 anos | Esquizofrenia | 2012 | Mora com a mãe e a irmã; o pai paga uma pensão para seu sustento. Voluntário em uma ONG, fazendo palestras sobre a esquizofrenia | Formado em Administração de Empresas; atualmente estudando desenho | 11 |
BEATRIZ 33 anos | Esquizofrenia | 2012 | Mora com a mãe, o pai faleceu. Psicóloga aposentada do serviço público por motivos de doença | Formada em Psicologia; fazendo pós-graduação em Saúde Pública | 9 |
MIRIAM 57 anos | Esquizofrenia | 2003 | Mora com o marido, tendo três filhas casadas e cinco netos. Psicóloga clínica | Formada em Psicologia | 9 |
PARDAL 52 anos | Transtorno afetivo bipolar | 2002 | Mora com a esposa, sem filhos. Aposentado por motivo de doença | Concluiu o ensino médio; fez um ano de Serviço Social | 9 |
PAULO 55 anos | Esquizofrenia | 2004 | Solteiro, mora com a família da irmã, que é casada e tem dois filhos. Aposentado por motivo de doença | Concluiu o ensino médio. | 9 |
RENATA 42 anos | Esquizofrenia | 2013 | Solteira, mora com o pai, a madrasta e a irmã. Trabalha com telemarketing | Concluiu o ensino médio; formada em Secretariado e Pedagogia. | 9 |
FERNANDO 32 anos | Esquizofrenia | 2013 | Solteiro, mora com a mãe e os irmãos. Trabalha como cuidador de idosos | Concluiu o ensino médio; fez curso técnico de cuidador de idosos | 8 |
ONOFRE 42 anos | Depressão | 2013 | Solteiro, mora com a mãe, o irmão e o sobrinho. Terapeuta holístico, mas não consegue trabalhar | Concluiu o ensino médio; fez curso de reiki | 7 |
CLÁUDIO 45 anos | Esquizofrenia | 2013 | Solteiro, mora com a mãe. Trabalha sem vínculo empregatício, fazendo “bico” | Concluiu o ensino médio | 7 |
ANDRÉ 32 anos | Esquizofrenia | 2012 | Solteiro, mora com a mãe e a irmã. Trabalha como músico ambulante | Concluiu o ensino médio | 7 |
MÁRIO 42 anos | Esquizofrenia | 2014 | Solteiro, mora com o padrasto. Não trabalha | Concluiu o ensino médio | 4 |
KELLY 65 anos | Depressão | 2014 | Casada, mora com o marido e dois filhos. Trabalha como secretária | Concluiu o ensino médio, fez curso de modista | 1 |
CARLA 32 anos | Esquizofrenia | 2014 | Solteira, mora com a mãe. Não trabalha | Concluiu o ensino médio; cursou Serviço Social | 1 |
CLARISSE 45 anos | Transtorno afetivo bipolar | 2013 | Solteira, mora com a mãe e uma filha em outro estado. Não trabalha | Concluiu o ensino médio | 1 |
Fonte: elaboração própria.
Os encontros foram gravados e, ao final, todos foram convidados a participar de entrevistas individuais sobre a experiência. Seis usuários deram entrevistas. Tanto as gravações quanto as entrevistas foram utilizadas no presente estudo. A metodologia adotada para estas entrevistas foi da História Oral de Vida (HOV) (MEIHY, 2005). Cada entrevistado teve a oportunidade de contar sua trajetória de vida repercutindo a entrada no Grupo Vida e a experiência no LabHum.
As narrativas obtidas foram organizadas e interpretadas de acordo com a técnica da “imersão e cristalização” que, segundo Borkan (1999) e Benedetto e Gallian (2018), pode ser considerada um estilo de organização dos dados da pesquisa, baseado na fenomenologia hermenêutica e utilizado em pesquisas qualitativas. Sua execução bem-sucedida está bastante próxima a uma expressão artística, seu processo básico consiste em ler, reler e emergir profundamente nos dados até que insights se cristalizem, permitindo assim que o pesquisador reconheça os temas emergentes da pesquisa. Ainda que a imersão seja uma etapa anterior à cristalização, não se trata de um processo linear, no qual ao se encerrar a etapa de imersão surja em seguida a etapa de cristalização, mas de um processo espiral em que ambas as etapas estão intimamente imbricadas. Trata-se de um círculo hermenêutico no qual o significado das partes é determinado pelo significado global do texto, que por sua vez pode alterar o significado global e vice-versa. Um círculo frutífero que implica um aprofundamento e entendimento contínuo do significado até se chegar a um resultado final. Os nomes dos participantes foram substituídos e a pesquisa ao qual este artigo se vincula foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unifesp, sob o parecer 1325/2015-CEP-Unifesp.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foi notável como a leitura e discussão do conto O Alienista mexeu diretamente com cada participante, mobilizando-os e trazendo à tona a história pessoal de cada um, evidenciando aquilo que Amarante (2007, p. 13) pontua ao se referir ao impacto da experiência estética no âmbito psiquiátrico como “o mais profundo e rigoroso tratamento científico não consegue, na maioria das vezes, falar tão diretamente à alma como uma obra de arte”. A partir dos debates acontecidos em grupo, pudemos estruturar seis grandes eixos temáticos: loucura, estigma, formas de tratamento, ciência, poder e o próprio Labhum, que foi avaliado pelos participantes protagonistas de todo o processo.
Loucura
O Alienista trata bastante da questão da loucura. Brinco que se fosse a minha psiquiatra 25 anos atrás, eu me internava e jogava a chave fora. Foi muita coragem por parte dela me deixar na sociedade, estava muito ruim, muito medicado. Acho que se fosse na época em que Machado de Assis escreveu o livro, teria passado a vida inteira no hospício. (Pardal)
Ele achava quem que era doido tinha que ter um lugar para ficar. Mas considero que o livro fala de coisas bem atuais, igual a este caso do Rio de Janeiro, que falaram que o rapaz tinha esquizofrenia e por isto matou e feriu um estudante. Nem todo esquizofrênico pega a arma e sai atirando. Eu não faço isto. Não é tudo igual, tem tratamento e nunca machuquei ninguém. (Paulo)
Me pergunto quem são os loucos da sociedade. Me batiam, davam pancadas na minha boca, no meu olho, sem eu ter feito nada e eu é que sou louca? Eu é que tenho problemas? Nunca fiz nada disso com ninguém! Nunca bati em ninguém! (Renata)
O primeiro eixo temático foi a “loucura”, o qual esteve presente o tempo todo e perpassou todos os encontros. A partir das discussões, os participantes puderam revisitar suas histórias de adoecimento, se apropriando delas de uma nova maneira libertadora e não idealista. Isto porque Machado de Assis trabalha de forma excepcional os limites entre “razão” e “loucura”, apontando para o fato de que essas fronteiras não são tão claras e bem delimitadas como se supõe, mas, como grande parte da experiência humana, são difusas e indeterminadas (COELHO, 2001).
A partir dessa nova tomada de consciência, de que os limites entre “razão” e “loucura” são difusos e indeterminados, Renata indaga quem são “os loucos da sociedade” e conta já ter apanhado da família sem ter feito “nada”, questionando se ela que é a louca ou se quem a agredia. Neste mesmo caminho, Paulo acredita que os temas tratados pelo livro são bem atuais e que a loucura muitas vezes é relacionada com a violência, mas que dentro da sua história de vida ele nunca machucou ninguém.
Contaminado pelo espírito “tragicômico” do livro, Pardal foi capaz de ter um novo olhar para a sua história e contar que passou por períodos em que se encontrava bastante adoecido. Também pode rir da situação e afirmar que se fosse sua médica lhe internava e “jogava a chave fora”. Ao falar disso com humor, Pardal e o grupo puderam rir num primeiro momento, pois foram afetados pela obra e pelo relato de Pardal, mas puderam refletir e se dar conta da situação absurda que é trancar pessoas para o resto da vida.
Tais reflexões dos participantes evidenciam o descrito por Amarante (2007), que, em sua análise das políticas de saúde mental e atenção psicossocial no Brasil, demonstra, a partir de uma revisão histórica, que o modelo psiquiátrico, baseado no modelo biomédico, considerava unicamente a hospitalização, o que, pelo relato de nossos protagonistas, parece ter permanecido no imaginário coletivo, mesmo depois de alteradas as políticas de atenção e assistência.
Estigma
O texto mostra como a sociedade exclui aqueles que não são muito ‘retos’ num padrão de conduta, e como se estabelece um padrão e automaticamente se exclui todos aqueles que não se enquadram. (Ricardo)
Dá para comparar O Alienista com a época de Jesus, naquele tempo as pessoas que tinham lepra eram isoladas, quem tinha lepra era um impuro. E no livro a loucura também seria algo contagioso, um motivo para isolar as pessoas. (Pardal)
O livro tratava daquilo que foi o pior de tudo na minha vida, que foi o abandono e a discriminação. As pessoas separam quem é doente de quem não é, e o doente nunca presta para nada. Fui muito discriminada pela minha família a vida toda. (Miriam)
É uma história fictícia mas que tem a ver com a realidade. Hoje em dia, quando uma pessoa age diferente das outras já é tachada, xingada, mal tratada, posta de lado, de certa maneira estão tirando do caminho, né?! (Renata)
Acho que é um fardo muito pesado ser julgado de louco. (Ricardo)
A abertura de espaço para um olhar mais amplo para a loucura que o Laboratório trouxe fez com que o grupo pudesse reconhecer e se dar conta do “estigma” social sofrido, e este foi o segundo eixo temático. Seu debate foi intenso e esteve bastante presente. Todos foram unânimes em afirmar que aquilo de pior que o adoecimento psiquiátrico tem está relacionado à falta de espaço e ao estigma que o “louco” sofre na sociedade atual, indo ao encontro do que Amarante (2007), apoiado em Basaglia, chama de “duplo da doença mental”; isto é, o conjunto de preconceitos que acompanham os diferentes quadros e que trazem ainda mais sofrimento.
O estudo pode mostrar que espaços como o LabHum contribuem para que a experiência de cada um possa ser reconhecida com expressão da sua própria subjetividade, e não apenas fruto de uma psicopatologia, contribuindo para uma consciência da própria história, além de fomentar a compreensão da alteridade. Dessa forma, somos conduzidos à compreensão de Ayres acerca da humanização como valor:
[...] em que o cuidar da saúde implica reiterados encontros entre subjetividades socialmente conformadas, os quais vão [...] esclarecendo e (re)construindo não apenas as necessidades da saúde mas aquilo mesmo que se entende ser a Boa Vida e o modo moralmente aceitável de buscá-la. (AYRES, 2009, p. 184-185).
A fala de Miriam parece resumir um sentimento geral do grupo mostrando, ao mesmo tempo, os efeitos da desumanização entendida como a desvalorização das subjetividades, ao afirmar que o livro tratava daquilo que foi “o pior da vida dela”, ou seja, o abandono e a discriminação, e a separação que é feita entre aquele que é doente e “não presta” do resto das pessoas. Renata aponta para uma sociedade que tem dificuldade em lidar com o diferente, costumando “tachar”, “excluir” e “tirar do caminho”. Pardal consegue perceber como esta dificuldade está presente na humanidade desde o descrito na Bíblia. De forma que, voltando à compreensão de humanização por Ayres (2009), nos damos conta de que se perdemos a subjetividade, perdemos o humano.
Formas de tratamento:
Ele deixou um emprego na Europa para vir se dedicar a essas pessoas, com paciência, com tudo. Ao mesmo tempo que há loucos, existem pessoas que estão interessadas em ajudar. Quer dizer que não estamos desamparados. Aqui no Grupo Vida existem terapeutas que dedicam a vida neste trabalho. Podemos dizer que aqui também temos nosso Dr. Simão Bacamarte. No Grupo Vida somos a elite da loucura, aqui não é que nem o filme “Estamira”, que está no lixão! (Pardal)
Eu casei, vivo na sociedade, apesar de ainda haver o resquício de pensamentos negativos, destrutivos, tudo, mas bem mais ameno né, por quê? Porque há um espaço como este, há profissionais dedicados que acreditam que é possível a pessoa que tem transtorno viver na sociedade, como qualquer outra pessoa. (Pardal)
Os grupos terapêuticos me ajudaram a socializar, não sei onde estaria sem eles. Atualmente, também faço análise, me sinto bastante próximo do meu analista. (Ricardo)
Ao se dar conta de que isolar não é tratar, o grupo pode olhar para a história das formas de tratamento da doença psiquiátrica, e entramos na discussão do terceiro eixo temático. A partir dos encontros do Laboratório, pode-se afirmar que os esforços da RP em fomentar novas diretrizes para o tratamento psiquiátrico surtiram efeitos na vida desses participantes, que compartilharam experiências vividas como positivas em relação ao tratamento recebido.
Ainda que o conto traga a figura do Dr. Simão Bacamarte como um médico que não obtém sucesso em sua jornada de estudo e tratamento da alma, a paixão e dedicação que o personagem tem por sua empreitada convidaram os participantes a relembrarem de profissionais que passaram por suas histórias e os ajudaram. Pardal afirma que o tratamento colaborou para a transformação de sua história e que, graças a isto, ele conseguiu se casar e viver em sociedade. O participante chega a comparar os psicoterapeutas do grupo com o personagem e reconhece que a dedicação destes profissionais foi fundamental em sua vida.
Evidencia-se aqui a efetividade dos esforços para atingir, nas palavras de Torre e Amarante, uma nova relação social com a loucura, na qual “A cura cede espaço à emancipação, mudando a natureza do ato terapêutico, que agora se centra em outra finalidade: produzir autonomia, cidadania ativa, desconstruindo a relação de tutela e o lugar do objeto que captura a possibilidade de ser sujeito” (TORRE; AMARANTE, 2001, p. 81).
Ao proporcionar um espaço para que os participantes pudessem compreender as diferentes formas de tratamento e refletir a respeito do que é verdadeiramente cuidar, o LabHum parece ter contribuído para que os participantes pudessem olhar para o lugar dos profissionais que fizeram parte de suas histórias e seu papel em sua emancipação e, ao mesmo tempo, a percepção de que nem todas as pessoas em intenso sofrimento mental recebem esta forma de tratamento. Neste sentido, Pardal reconhece que o Grupo Vida é a “elite da loucura” e difere a sua experiência da retratada no filme “Estamira”, em que a protagonista, que sofre de esquizofrenia, está no lixão. Ao tomar consciência de maneira profunda das diferentes formas de tratamento, esses participantes podem se tornar ativos na busca por melhores condições para si e para os outros, o que nos leva a concluir o quanto a arte contribui para aumentar significativamente o empoderamento e a inclusão social na saúde mental (PORTUGAL; MEZZA; NUNES, 2018).
Ciência
Isto levanta uma questão: será que a gente não está dando poder demais à ciência? Em nome da ciência ninguém questiona. (Ricardo)
Lógico que tem uma crítica de Machado em cima disto, mas o Simão Bacamarte não era um cara malvadão, autoritário, ele estava fazendo em nome da ciência, mas ele foi teimoso, tanto é que depois ele se recolheu e foi sozinho para a Casa Verde e, no final de tudo, depois de 17 meses, ele morreu! (Beatriz)
Simão Bacamarte era um personagem bastante inflexível como cientista. Há alguns anos atrás, também era muito duro nas minhas opiniões, acho que depois do desenho comecei a me tornar um pouco mais flexível e ver as coisas de um outro modo. Acho que faltou isto para Simão Bacamarte, ele acaba se esquecendo de colocar outro cientista para o supervisionar. Isto foi uma grande sacada do Machado de Assis, porque se ele tivesse colocado este médico supervisor, este não teria deixado ele morrer à mingua como aconteceu. Ele foi orgulhoso, não viu o outro e tentou se autocurar. (Ricardo)
O quarto eixo temático explorado pelo grupo foi a respeito da Ciência. No conto machadiano, o autor questiona de forma sagaz e com muito humor este status da ciência. O tema apareceu diversas vezes e o grupo pôde compreender o perigo que se corre ao colocar este discurso no lugar do inquestionável. Para Amarante (2007), uma das principais rupturas que a RP deve operar diz respeito ao lugar do discurso técnico-científico como lugar da verdade absoluta.
Para Boaventura de Souza Santos (2000), conforme citado por Amarante e Torre (2017, p. 769), “uma razão ‘indolente’ se apropriou das matrizes epistemológicas de produção do conhecimento; portanto, seria preciso descolonizar o pensamento [...] rompendo com o estatuto de verdade do discurso científico e com as consequências da discriminação dos discursos extracientíficos como inferiores”.
O LabHum permitiu que a necessidade dessa ruptura fosse observada pelos participantes, proporcionando uma consciência ampliada sobre o tema. Desta forma, Ricardo e Beatriz enxergaram a figura do Dr. Simão Bacamarte como um cientista inflexível, que não aceitou ajuda, e talvez por isto não tenha obtido sucesso em sua empreitada. Ricardo levanta a questão de que atualmente estamos “dando poder demais à ciência”, e que em “nome da ciência ninguém questiona”.
Poder
Parece que tudo vira um jogo, e o povo passa a ser apenas um detalhe. Tudo é um jogo. Mas, infelizmente nesta vida, eu não aprendi a jogar! (Pardal)
O que percebo é que o poder não está presente somente no Alienista protagonizado por Simão Bacamarte, na verdade todo o sistema público funciona assim. Para mim, é muito difícil trabalhar no sistema público e ser feliz no Brasil, não sei como é em outros países. (Beatriz)
Me chamou muito a atenção a briga pelo poder, de tentarem tomar o poder à força. Mas quando ele chega no poder, ele foi lá na Casa Verde e deu uma amaciada, ele não foi bater de frente, porque ele viu que dois poderes, se confrontados, dá uma destruição muito grande. Então é melhor unir do que repartir o bolo, para que destruir o que pode ser conquistado?! (Pardal)
O quinto eixo temático foi o “poder”. A discussão proporcionou a compreensão das relações de poder, tanto no conto como na sociedade, e o modo destas influenciarem a vida de todos. Muitos se reconheceram enquanto o lado mais fraco desta trama, mas fizeram questão de afirmar que não gostam nem do papel, nem do lugar de vítima.
É interessante perceber como esse eixo temático proporcionou a constatação empírica do afirmado por Torre e Amarante (2001), que, ao tratar das estratégias e dimensões do campo da saúde mental, afirmam que a atenção psicossocial deve ser pensada enquanto processo, pois só assim novos lugares e elementos diferentes poderão aparecer. Assim, para que os usuários possam ser protagonistas deste processo, é necessário que a doença seja colocada entre parênteses, já que, sem a aparição dos sujeitos, o que resta são relações de poder.
Nesta direção, Pardal afirma que “tudo vira um jogo e o povo passa a ser um detalhe” e que ele infelizmente “não aprendeu a jogar”. Aqui se percebeu o quanto pessoas em sofrimento mental estão vulneráveis diante de uma lógica social perversa que os desconsidera, mas que, ao tomar consciência do lugar e do papel de cada um, podem começar a transformar esta situação.
LabHum
Tem umas coisas na minha cabeça da leitura do Alienista, para mim foi uma coisa gostosa, eu gostei muito, acho que valeu. (Beatriz)
A leitura é rica, hoje tem muita informação, tem computador, tem tudo aí, mas as pessoas não conversam, é muito rápido uma notícia aqui, outra ali, você nem processa, não dá tempo de digerir. A leitura é coisa devagar, é mais rica, né?! (Pardal)
Eu gostei de participar, no princípio achei muito intrigante vocês trazerem este texto, com esta temática para um grupo desta natureza. Mas acho que ajudou principalmente para termos uma compreensão maior sobre a questão dos padrões, de tentar se encaixar nos padrões da sociedade. Deu uma referência sobre sobriedade, o texto trabalha muito esta história de parâmetro, os participantes viram que não é porque eles têm um rótulo que significa que eles sejam isto. (Ricardo)
Gostei da experiência de ler com o grupo, porque quando lia sozinha tinha uma experiência ruim, a leitura acabava confundindo a minha mente e não sabia o que fazer com aquilo, mas no grupo era bem diferente, pois tinha o que fazer com aquilo que tinha mexido comigo, havia um lugar para trazer tudo aquilo e trabalhar com os sentimentos. (Miriam)
O último eixo temático surgiu de maneira espontânea ao longo das reuniões, mas no encontro de histórias de convivência e nas entrevistas os participantes foram convidados a falarem diretamente sobre como foi participar do LabHum. Todos que concederam entrevista gostaram da experiência.
Os integrantes do Grupo Vida se encontraram afetivamente ligados à leitura, experiência fundamental para que o LabHum tivesse um efeito satisfatório, uma vez que a potência da literatura está no fato de ela mobilizar e despertar os afetos; além disso, tiveram um espaço para refletirem sobre esse afetos despertados, experiência fundamental para se apropriar daquilo que se sente e pensa (BITTAR; GALLIAN; SOUSA, 2013; LIMA et al., 2014; SILVA; SAKAMOTO; GALLIAN, 2014; CARVALHO, 2017; GALLIAN, 2017).
Miriam diz que “gostou da experiência de ler em grupo” e que quando “lia sozinha tinha uma experiência ruim”, já que a leitura acabava “confundindo sua mente”, mas que com o grupo teve a oportunidade de falar sobre isto e “trabalhar com seus sentimentos”. Pode-se perceber a importância do espaço estético-reflexivo oferecido pelo LabHum, uma vez que a experiência estética sem um espaço para a reflexão pode ser desorganizadora, mas, ao reservar um lugar para a reflexão dialógica, o LabHum proporciona uma reorganização profunda e transformadora. Neste sentido, amplia o conhecimento da experiência humana e a autoconsciência.
Ao trabalhar esses seis eixos temáticos, o LabHum permitiu que os participantes pudessem perceber que os limites entre essas experiências eram difusos e indeterminados, ampliando a capacidade de cada um deles em lidar com a realidade de uma forma mais complexa ou, nas palavras de Coelho (2001), exercitando o pensamento do tipo prismático. Este é essencial para a “ampliação da esfera da presença do ser”, que é a experiência de ampliar o conhecimento da experiência humana e suas vicissitudes, renovando assim a vida emocional dos participantes e contribuindo para uma nova consciência da história de cada um.
Nessa perspectiva, a experiência vivenciada no LabHum colaborou para a construção de um novo lugar social para a loucura, que é um dos grandes objetivos da RP (AMARANTE, 2007; AMARANTE; TORRE, 2017; AMARANTE; NUNES, 2018). Ademais, o LabHum possibilitou uma maior compreensão pelos sujeitos de sua história de vida, de seu lugar na sociedade, de suas potencialidades, contribuindo para uma mudança de atitude em relação a esses aspectos, ao ampliar o conhecimento do humano como difuso e indeterminado (COELHO, 2001).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo confirmou a efetividade do uso da Literatura, sobretudo na dinâmica do LabHum, como um lugar de construção coletiva do sujeito da loucura e do sujeito do profissional da saúde rumo à “invenção da saúde”, como preconizou Rotelli, Leonardis e Mauri (1990). Neste sentido, o presente estudo parece ter encontrado um caminho interessante, ao trazer a experiência estética do LabHum para pessoas com quadro psiquiátrico grave que, ao contrário do que poderiam imaginar aqueles que estigmatizam as doenças mentais, vivenciaram uma experiência de humanização ao ressignificarem suas vidas numa vivência conjunta, mostrando para nós, os profissionais da saúde, o que poderia ser uma atendimento humano - e não idealizado - no campo da psiquiatria.
O uso das artes como possibilidade de expressão da subjetividade da pessoa em intenso sofrimento mental já havia se mostrado bastante eficaz com Nise da Silveira, e suas contribuições foram essências para se pensar um caminho para a RP. E, mais recentemente, com o trabalho de Vitor Pordeus (2017), na Casa do Sol do Instituto Municipal Nise da Silveira, que produziu resultados significativos na promoção da saúde mental a partir do uso do teatro. Pacientes que antes não falavam e nem demonstravam alegria passaram a se comunicar e a sorrir, apreciando muito o trabalho.
Pela duração e extensão da atividade, não foi possível fazer inferências sobre o impacto da atividade no processo de cuidado e saúde mental e social dos envolvidos, o que demandaria um estudo de maior longitudinalidade. No entanto, o trabalho demonstra ser uma ferramenta factível e com resultados imediatos estimulantes para ulteriores explorações e estudos. No entanto, o estudo mostrou que o LabHum certamente pode ser aplicado como mais uma estratégia possível para a reconstrução de possibilidades de vida dos sujeitos em sofrimento mental. Como aponta Amarante (2007, p.102), “na tradição basagliana” o setor será ressignificado como território, no sentido de relevar o espaço de vida das pessoas como espaço de trocas reais e simbólicas, sendo que “atuar no território significa transformar o lugar social da loucura em uma sociedade”. Parece-nos, então, que o LabHum seja uma possibilidade efetiva para essa atuação no território.1
AGRADECIMENTOS
Agradecemos ao CNPq, que concedeu uma bolsa de doutorado para a pesquisadora principal do trabalho.
REFERÊNCIAS
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Recebido: 21 de Janeiro de 2019; Revisado: 06 de Maio de 2019; Aceito: 25 de Maio de 2019