2002 - Gallian - Visão Histórica da Pesquisa Científica

Visão Histórica da Pesquisa Científica*

Dante Marcello Claramonte Gallian**

* Artigo redigido originalmente para ser apresentado em aula para o Curso Avançado de Metodologia Científica do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da USP, destinado à formação continuada e atualização dos orientadores de pós-graduação da FM-USP.

** Doutor em História Social pela FFLCH-USP e Diretor do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da UNIFESP/EPM.


 

A ciência enquanto fruto do desejo ou necessidade de conhecer apresenta-se como um dos elementos mais essenciais do ser humano.

Já nos mitos cosmogônicos mais importantes das grandes civilizações, a ciência ou conhecimento aparece como elemento definidor por excelência do Homem.

Criado à imagem e semelhança do seu Criador, o homem carrega a centelha do fogo ou da luz do conhecimento divino. Conhecimento este não apenas dado, mas também roubado, arrancado por força da transgressão, tal como encontramos no mito de Prometeu ou no livro do Gênesis.

Em ambas tradições, a judaico-cristã e a greco-romana, a ciência dada por Deus parece insuficiente para o homem que busca ir além. Já não basta ser imagem e semelhança, mas deseja ser a matriz mesma, a fonte. Não mais criatura, mas criador.

Estas imagens míticas primordiais são uma boa pista para pensarmos o desenvolvimento da ciência e da pesquisa científica ao longo da história ocidental.

Dentro destas concepções, o conhecimento ou ciência, era, a princípio, um dom, um presente de Deus - na perspectiva judaico-cristã fala-se de dons preternaturais, ou seja, além da natureza. A transgressão dos limites impostos pela divindade, entretanto, levou a uma desfiguração desta condição original, fazendo do conhecimento não mais um dom mas uma conquista, fruto do trabalho e do sacrifício.

É aí que se inicia a ciência como categoria histórica: fruto da observação, da indagação, do esforço, da pesquisa. O homem agora destituído dos dons preternaturais, expulso do paraíso, acorrentado ou preso na caverna, inicia uma nova relação com o mundo, consigo mesmo e com seu criador, fadado a suprir esta ontológica necessidade de conhecer através de suas limitadas faculdades: os sentidos, a inteligência e a vontade.

O universo agora se apresenta como um enigma avassalador, ora magnífico - nas suas maravilhas e encantos - ora terrível - na sua implacabilidade destruidora. E a sede de conhecimento aliada à escassez de respostas, determina a eclosão de um processo que, mais que a necessidade de se alimentar, proteger ou reproduzir, representará uma força incomparável na história.

Já nos relatos mais antigos, como na Bíblia e nos livros mesopotâmicos, nos poemas épicos e gestas das mais diversas civilizações, identifica-se a distinção entre o conhecimento revelado e o adquirido, a ciência humana. Este movimento compreensivo do espírito, envolvendo questionamento e trabalho intelectivo pode ser considerado o início da pesquisa científica propriamente dita. São as descobertas que se fazem por meio da observação, da análise e classificação dos fenômenos, onde mais tarde se acrescentará a experimentação.

No campo da história da medicina, por exemplo, é comum encontrarmos nos documentos da antiguidade - assim como nos relatos etnográficos sobre outros povos chamados "primitivos" - descrição de conhecimentos revelados por divindades ao lado de outros transmitidos por tradição histórica e justificados apenas pela observação empírica e o bom senso. [i] É o caso de remédios e poções extraídas de certas plantas para curar determinadas doenças comuns, como desarranjo intestinal ou dor de barriga, descobertas por lógica dedução ou acaso. [ii]

É certo, entretanto, que a coexistência entre estas duas formas de conhecimento ou ciência não se davam de maneira equilibrada ou equivalente nas sociedades antigas. Sem dúvida, durante muito tempo, a ciência revelada ou divina gozou de um prestígio e uma importância infinitamente maior nestas civilizações, pelo menos no plano ideológico.

Foi apenas com o desencadeamento do processo de desmistificação do cosmos do homem antigo, levado a cabo, a partir do século VI AC, pelos filósofos helênicos, que essa situação começou a mudar.

Nascidos num contexto histórico muito peculiar, no entrecruzamento de diversas etnias, culturas e sociedades, os pensadores gregos foram talvez os primeiros homens a empreenderem uma confrontação sistemática de saberes e tradições cosmogônicas que acabou por gerar, um método de análise e, ao mesmo tempo - com conseqüências mais revolucionárias - uma perspectiva fundamentalmente nova de olhar o universo: a crítica. Diante de tantas versões e explicações, mitos e histórias sobre a origem e o desenvolvimento do cosmos, qual delas encerrava efetivamente a verdade? Estando todas elas devidamente avalizadas por divindades e autoridades míticas, como podiam divergir e até contradizer umas às outras? A conclusão, pelo menos a princípio, é que, por detrás desta aparente contradição, a verdade subjazia latente, a espera de ser descoberta, desvelada. E neste sentido, esta nova condição da verdade exige sem dúvida uma mudança de atitude por parte do espírito humano: não mais passiva, de quem acolhe, re-cebe, mas ativa, de quem busca, des-cobre, des-vela. A inquirição, a dúvida cinde, rompe o véu que envolve os fenômenos e daí esta nova atitude receber o nome de crítica, palavra etimologicamente relacionada com crise, quer dizer quebra, cisão.

Com os filósofos gregos, portanto, a ciência humana, fruto da investigação e da pesquisa adquire um novo status na cosmovisão ocidental. Tudo agora é passível de exame, de crítica e, portanto, o conhecimento, a ciência, mesmo das coisas mais profundas e essenciais, não é visto como algo que se acolhe e se recebe, mas como algo que se arranca e se conquista.

A revolução cosmogônica operada pelos filósofos abriu campo para o surgimento da ciência que, em termos essenciais, conhecemos até hoje.

Os primeiros grandes beneficiários desta nova perspectiva foram os cientistas do mundo helenístico e latino. [iii] Encabeçados por Aristóteles, grande sistematizador do método científico clássico, os sábios deste período encontraram no contexto das conquistas alexandrinas e depois romanas uma demanda e, ao mesmo tempo, uma abertura incomparável no campo da pesquisa e, principalmente, da pesquisa aplicada. Esboça-se aí a aliança entranhável entre ciência e tecnologia, tão característica da civilização ocidental.

A descoberta e conquista de novos mundos fez-se acompanhar de um crescimento considerável do interesse pelos fenômenos físicos, naturais e humanos. Ciências como a história, a geografia e a etnografia se sistematizaram, ao mesmo tempo em que a física, a matemática e a biologia apresentaram um grande desenvolvimento. Nas grandes cidades, como Alexandria e, mais tarde, Roma, passam a existir novos “templos”, os das ciências: bibliotecas, jardins, zoológicos e até protolaboratórios onde se desenvolviam e testavam novas máquinas e aparatos indispensáveis para a manutenção dos poderes imperiais. Figuras como Arquimedes, Euclides e Galeno demarcam este período.

O legado greco-romano estabeleceu-se como um portentoso paradigma para as civilizações que emergiram após este período: a européia-cristã e a árabe-muçulmana.

Nascida da recombinação das ruínas da cultura greco-latina com elementos das culturas germânicas, e animada pelo espírito e ideal do cristianismo, a Civilização Cristã Ocidental, depois de uma conturbada "infância", marcada por guerras e invasões, chega à maturidade resgatando e re-valorizando o conhecimento científico clássico. E o faz de uma forma quase religiosa, canônica.

Coisa semelhante se deu também na porção muçulmana do mundo medieval e ainda de forma mais rápida e contundente, já que o contato com as fontes clássicas se deu ali de forma mais direta e imediata do que no mundo cristão.

Tal fato se deve, fundamentalmente, às condições históricas que marcaram a emergência destas civilizações: seus inícios conturbados, protagonizados por povos sem tradição intelectual e científica (germânicos e árabes), que frente ao peso e prestígio cultural e intelectual da civilização vencida, passada a fase de imposição e absorção política, se vêm obrigadas a recorrerem ao passado para recriar o seu presente e isto em todas as esferas.

Os grandes tratados científicos da Alta Idade Média são, em sua maioria, sumárias compilações do conhecimento antigo, sem nenhuma pretensão crítica. [iv]

A dinâmica de desenvolvimento destas civilizações, entretanto, se encarregou, ela mesma, de gerar o movimento dialético de crítica e superação desse paradigma clássico-escolástico de ciência. Por um lado contaram fatores exógenos, como a expansão geográfica e comercial – tal como antes havia ocorrido no período helenístico e romano – e, por outro, fatores endógenos, como o avanço da análise crítica das fontes a partir da confrontação das diversas versões e traduções, assim como da confrontação destas com a própria realidade. [v] E no mundo cristão, se num primeiro momento, a influência da patrística tendeu a condicionar a perspectiva científica aos moldes da dogmática teológica, logo em seguida, a própria teologia, fundamentalmente a de São Tomás de Aquino, apresentou-se como um dos fatores mais importantes, senão o crucial, neste movimento de descanonização e desdogmatização do pensamento científico. [vi] Movimento este que lançou as bases para o surgimento do pensamento científico moderno.

A partir da abertura tomista, a especulação científica começou a ganhar grande força através de pensadores importantes como Occam e Bacon, este último associado com o surgimento do empirismo.

Dentro desta nova perspectiva, o universo, de uma forma semelhante ao ocorrido na época do surgimento da filosofia da natureza, apresentava-se como um enigma a ser decifrado e não mais como um dado definido pela autoridade dos sábios antigos. Porém, desta feita, com um arcabouço teórico e técnico muito mais sofisticado que os primeiros filósofos da Antiguidade, os cientistas modernos realizaram uma revolução de proporções consideravelmente maiores, do ponto de vista de suas conseqüências históricas. Isto porque a revolução científica, tal como é chamada pelos historiadores, foi elemento essencial na construção da civilização moderna. Ao negar ou pelo menos questionar a priori todo o conhecimento antigo, a nova ciência inaugura a tradição moderna, fundamentada na idéia da crítica, na investigação sistemática e no critério da razão matemática.

O período inicial desta revolução foi traumático e exigiu um certo tempo para que o pensamento científico se desvinculasse do pensamento teológico escolástico. Os casos de Copérnico, Galileu e Giordano Bruno são exemplos característicos desta época.

Mais tarde, entretanto, principalmente depois de Descartes, a ciência moderna começou a firmar sua autonomia, reivindicando a tarefa de redefinir o cosmos a partir de uma metodologia própria, inteiramente assentada na lógica racional. Entramos assim na aurora do Iluminismo, momento em que se começa a acreditar na possibilidade de alcançar a verdadeira verdade através das luzes da razão científica, banindo para sempre as trevas do misticismo religioso e mítico.

O projeto que se esboça ao longo do século XVIII torna-se programa para os novos cientistas do século seguinte. O XIX, como se sabe, se apresenta como o Século da Ciência, momento em que, entusiasticamente, começa a se definir a verdadeira arquitetura e funcionamento do universo e da natureza, trazendo como conseqüência não apenas o conhecimento definitivo como também a própria redenção do gênero humano e das sociedades. O positivismo de Auguste Comte de um lado e o evolucionismo de Spencer por outro, são testemunhos emblemáticos desta crença inabalável na ciência que caracterizou o século das grandes descobertas.

Iniciado sob o signo do entusiasmo e da esperança, o Século da Ciência termina entretanto sob o signo da dúvida e da perplexidade. O trabalho ingente levado a cabo por inúmeros cientistas devotados, mais do que ultimar a obra de definição do universo, estimada como iminente, determinou a necessidade de uma grande e urgente revisão, colocando em cheque todo o projeto anterior. Mais uma vez, a própria lógica da pesquisa científica acabou por provocar a redefinição dos pressupostos teóricos e dos paradigmas estabelecidos.

A matemática não-euclidiana ou a física não-newtoniana, que vão eclodir no fechamento do século XIX e início do século XX, determinam uma mudança de mentalidade, tanto em nível filosófico - abalando a crença religiosa na ciência - quanto em nível metodológico - relativizando o império do quantitativo, do empírico e do mensurável.

O advento das crises e guerras deste período - convergindo na primeira grande guerra mundial como evento emblemático - coincidindo com o surgimento da psicologia de Freud e seus seguidores, contribuíram de maneira fundamental para, enfim, colocar em cheque o próprio conceito paradigmático de razão. Reconhece-se então que nem todas as forças e dinâmicas existentes no universo, na natureza e no homem operam segundo uma lógica mecânica previsível. O mistério volta a ocupar espaço na concepção humana do cosmos.

O século XX se encarregaria, portanto, do difícil trabalho de desconstrução e reconstrução da herança do XIX, trilhando novos caminhos, encontrando novas encruzilhadas... Às vezes de maneira cética ou niilista, às vezes de maneira esperançosa e entusiasta. De qualquer forma, os novos problemas colocados pela ciência na passagem do século se apresentaram como um vasto programa que, gradativamente, vai sendo assumido por todas as ciências, tanto as novas como as mais antigas.

O problema fundamental que se apresenta na pesquisa científica, ao despontar o século XXI, é, sem dúvida, a necessidade de se redefinir o conceito de razão que herdamos do iluminismo e do positivismo dos séculos XVIII e XIX. Passadas e esgotadas as tentativas resistematizadoras do século passado - os neo empirismo, positivismo, racionalismo, etc – cabe agora o desafio de resgatar outras tradições, para além da herança cientificista. A consideração de outras percepções da inteligência humana, além do universo racional matemático, na construção da nova teoria do conhecimento tem sido um dos dados mais significativos deste processo de transformação que já estamos vivendo.

Sem dúvida que os métodos tradicionais nos proporcionaram e ainda continuam proporcionando dados e conhecimentos válidos e efetivos sobre a realidade, porém os resultados e conquistas obtidos depois de mais de dois séculos de ciência positiva, têm nos colocado atualmente, nos mais diversos campos, em situações limite que a própria ciência reconhece-se incapaz de solucionar. O recurso a estas outras dimensões do conhecimento, tradicionalmente associadas em nossa civilização às artes e às humanidades, apresentam-se agora como uma alternativa cada vez mais considerada e valorizada. O apelo à intuição, à criatividade e à afetividade emerge como meio necessário para o desenvolvimento da pesquisa científica no presente e no futuro, servindo não apenas como instrumento de progresso mas também de humanização, na medida em que reclama, de forma inalienável, o resgate da sua dimensão ética.

Filha da rebeldia do homem, a ciência parece estar agora querendo levá-lo de volta à casa paterna.

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