UM DIA ESTRANHO EM UM ADMIRÁVEL MUNDO ESTRANHO

por David Sergio Hornblas

(Reflexão feita a partir do Livro “Admirável Mundo Novo –Aldous Huxley)


Imaginem a seguinte situação terrível: você chega em casa e encontra tudo revirado: gavetas, armários, roupas espalhadas por todos os cantos, objetos quebrados, papéis pelo chão e a primeira surpresa: aquele dinheiro que você tirou do banco pela manhã, sumiu. Era para pagar o carro que você comprou depois de economizar durante um bom tempo. Sumiu tudinho.
Segunda surpresa: enquanto você tenta se refazer da perda, os dois sujeitos que invadiram sua casa estão ali, na sua frente com uma arma apontada pra você.
Pedem outras coisas de valor. Você tem algumas joias de família, nada de grande valor real, mas ante a ameaça você entrega. Levam também aqueles poucos dólares que sobraram da sua viagem de férias. Havia também no cofre alguns objetos pessoais antigos, de algum valor real e grande valor pessoal.
Você entrega tudo pra eles ante o medo. Nada pra fazer. Já tinham carregado o carro que os aguardava lá fora com duas TVs, DVD, câmera digital, computador, dois notebooks, um Ipad, um telefone sem fio, equipamento de home theater, roupas, utensílios elétricos de cozinha. Ou seja, levaram tudo. Que puta azar ter a grana para pagar o carro em casa.
Afinal, você correu esse risco.
Os ladrões vão embora e você fica desolado. Olha para os lados e vê tudo destruído e o avalia o que foi roubado. Avalia também o risco de ter morrido. Pensa em tudo e resigna-se: nada a fazer. Anos de trabalho e economia, completamente perdidos.
Você chama a polícia que vem e faz os levantamentos necessários. Você vai até a delegacia e providencia um BO. A noite termina muito mal. Você não consegue dormir. Um sentimento horroroso toma conta de você.
Decide dar uma olhadela melhor pela casa e ao vasculhar as coisas, encontra a carteira de um dos ladrões com RG, uma conta de água vencida, e uns trocados. Pensa: amanhã levo pra polícia que certamente irá pegá-los e talvez recupere algumas das coisas roubadas.
Você dá uma ajeitadinha no ambiente e tentar dormir. Por umas duas horas consegue pregar os olhos.
Dia seguinte: coincidentemente é o quinto dia útil e você vai receber seu salário, depois de um mês de trabalho.
Vê o contracheque e tenta se concentrar no trabalho.
Um zumbido ecoa em seus ouvidos. Ouve vozes estranhas. Vê as cores mais vivas. Parece que usou uma substância intoxicante. Não. Você apenas está ainda muito estressado com os acontecimentos. Como numa imagem onírica.
Termina o expediente.
Você vai até o caixa eletrônico e saca seu salário todo. Você não planejou isso. Fez sem entender bem por que.
Pega os documentos no ladrão e ao invés de ir para a delegacia, estuda o endereço da conta de água vencida encontrada no meio da bagunça e desloca-se até lá. Uma coisa estranha sem dúvida. Mas incontrolável.
É um lugar na periferia. Trajeto complicado. Ruas confusas. Depois de hora e meia, você encontra o endereço. Para o carro e toca a campainha: um sujeito aparece no portão enferrujado e você o identifica pela foto do RG, agora em suas mãos. Foi ele. Entreolham-se. O cara não pisca, nem você.
Você então, saca do bolso seu salário e entrega pra ele. Todinho. Surpreso o ladrão titubeia. Você insiste. Ele duvida. Você deixa o dinheiro e os documentos no chão e sem dizer nada, vai embora. Não olha para trás. Entra no carro e volta pra casa.
Isso aconteceu no ano de 2020 com todos nós, quando o fomos empurrados para uma condição humana sem precedentes. Como os defuntos de Huxley.
No meio desta crise sem prazo de validade, somos roubados, achincalhados, humilhados e ato contínuo, entregamos o que restou aos meliantes: nossos destinos.
E eles brincam de “vaca amarela” na cara da gente.
Estamos sós. Decididamente sós. Inapelavelmente sós em um admirável mundo estranho.

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