Por Milena de Oliveira Martins Kis
Aluna do Laboratório de Humanidades (Eletiva) do CeFFi-Unifesp (Dezembro de 2019)
“Quão perigosa é a aquisição do conhecimento e quão mais feliz é o homem que crê que sua vila natal é o mundo, do que aquele que aspira tornar-se maior do que sua natureza permite.”
Mary Shelley nomeou sua obra como ‘Frankenstein, ou o Prometeu moderno’, explicitando todo o egocentrismo de Victor ao pensar que sua ideia fixa o tornaria o benfeitor da humanidade; aquele que toma dos deuses não o fogo, mas a vida, e a devolve aos homens. Com sua ideia fixa e a ilusão de que a ciência serve tão somente aos bons fins, o cientista perde suas próprias noções de limite frente à sua necessidade de grandeza. A autora estava discutindo questões que, anos depois, veríamos explícitas: a ciência, que só promovia bons avanços, desenvolveu as bombas atômicas e as câmaras de gás, permitindo genocídios e destruições em massa.
É esse, provavelmente, o ponto inicial das monstruosidades discutidas na obra. Victor Frankenstein e seu ego criam uma criatura sem pensar nas consequências disso ou cogitar por um segundo que fosse o que seria de sua criatura quando ela tomasse vida. Ela falaria? Sentiria? O que ela faria com seus próprios sentimentos, desejos e vontades? Victor não se presta ao trabalho de refletir sobre as consequências de seus atos, preocupado apenas com seus resultados. E, pior, mesmo quando todo o problema para bem em frente a si, o criador nega a sua criatura e não assume responsabilidade pelos próprios atos. Seria um exemplo maravilhoso e capaz de dar orgulho a Maquiavel. O fim, para o detentor de uma ideia fixa, com certeza parecia justificar os meios.
Por sua vez, a criatura é como uma criança presa em um corpo disforme e aterrorizante, ávida por fazer parte daquele mundo juntamente às pessoas que tanto a fascinam. Aprende a falar, compreende o frio, a fome e como lidar com eles, observa uma família, analisa seus comportamentos e como agem e parecem sentir em relação uns aos outros e se vê sozinho. A criatura só se torna um monstro quando se depara com um mundo que a repudia independentemente de seus esforços para se encaixar e ser bom para os outros. Sua monstruosidade vem da rejeição e da marginalização completas. Da mesma forma que olhamos torto, julgamos, criticamos e, por fim, ignoramos, seguindo reto com nossas vidas, quando vemos crianças em situações de rua. Sentimo-nos sempre no direito de apontar os dedos para os outros e dizer o que deveriam fazer, juntamente com um discurso romantizado de esforço e meritocracia que, de forma alguma, cabe na vida dessas pessoas; mas raramente pensamos no nosso papel e impacto sobre o resto da sociedade.
Criador e criatura passam por seus próprios processos de desumanização que, apesar de vinculados, não são idênticos. Contudo, existe um ponto de encontro crucial entre ambos: a solidão. O isolamento - seja pela cegueira da ideia fixa ou pela rejeição que força alguém a viver recluso - é a causa comum da perda de noção que um ser tem de sua própria humanidade. Podemos pensar que a vida solitária os obrigaria a olhar para dentro de si e, com isso, encontrar-se como seres portadores de suas próprias individualidades. Entretanto, o que vemos é o fato de que nossa humanidade e nossas concepções de nós mesmos e de nossos questionamentos estão necessariamente atreladas não só a visão que os outros têm sobre nós, mas também ao fato de que nossas interações e vivências nos moldam e nos mostram tal modelagem. A conclusão? O processo de humanização depende da convivência junto a outros seres humanos. Para existirmos, dependemos da sociedade; de vivermos nela e sermos percebidos por ela.
É aqui que entra o Laboratório de Humanidades e toda a experiência dessas últimas terças-feiras. Poderíamos simplesmente nos sentar em nossas camas, sofás, cadeiras e poltronas e ler todas as páginas da obra de Mary Shelley. Poderíamos ter refletido sobre vários questionamentos e críticas sozinhos no conforto de nossas casas ou em uma das mesas da biblioteca da faculdade. Mas a experiência se tornou muito maior em meio a outras pessoas que leram as mesmas palavras, mas tiveram impressões diferentes e percepções distintas. Um livro proporciona uma viagem e cada um de nós a faz de um modo diferente. Poder compartilhar nossas viagens foi muito mais enriquecedor ao passo que pudemos olhar para a mesma obra com os olhos dos outros e não apenas os nossos. Vimos o mesmo mundo sob óticas diferentes e não poderia haver experiência mais humanizadora do que essa. Em vez de cedermos à correria e à solidão, optamos por compartilhar e pensarmos juntos. Vivemos a profilaxia de nos tornarmos “Frankensteins”, solitários em nossa própria experiência.