Por Karla Tuanny Fiorese Coimbra
História de convivência do ciclo de Ressurreição, de Tolstói
O meu primeiro contato com o Labhum foi através do livro Névoa, e fiquei intrigada como aquele livro poderia ter alguma relação com a humanização. Depois, ao ir participando das nossas reuniões, fiquei muito surpresa com o desenrolar de tudo e como o Dante conseguia extrair humanização através de cada situação contida no livro. Desta vez, ao ler o livro todo pela primeira vez, parecia que Tolstói havia escrito esse livro para o Labhum, para tocar na alma de seus leitores, despertando a sensibilidade de cada um que o lê.
Sou médica e trazendo as reflexões do Labhum para a minha vida, observo como essa questão de humanização em saúde (a começar pela relação médico-paciente) precariza-se cada dia mais. Talvez porque a evolução da medicina seja mediada por recursos técnicos, científicos, uma vez que esse processo de modernização envolve em suas bases a máquina como modelo, a ideia de que máquinas podem substituir o homem. Na própria formação médica observo o como é desumano: cargas horárias elevadíssimas, várias horas ininterruptas de plantão sem descansos, aprender a ter preocupação com a doença e não com doente, etc. Quando na verdade os próprios professores deveriam fazer esses médicos em formação enxergarem nesta relação algo reflexivo, conseguindo fazer uma projeção da sua própria fraqueza (e limitação) na fraqueza do outro que sofre.
Esse livro é fantástico! Incrível como Tolstói retrata a humanização em todos os seus aspectos... parece até que ele sabia “vão precisar do meu livro não só hoje, mas daqui há 100 anos, 1000 anos.” Ele começa o livro lindamente, despertando de cara a esperança no leitor ao falar da primavera com toda a cor da natureza: “O sol aquecia, a relva crescia, as cerejeiras desdobravam suas folhas aromáticas (parece até que estou sentindo seu cheirinho daqui), os pardais e os pombos, na alegria da primavera, já preparavam o ninho. Também estavam alegres as plantas, as aves, os insetos, as crianças.” Já nesta primeira página da história, Tolstói chama a atenção de como nós vivemos: “Mas as pessoas – adultas – não paravam de enganar e atormentar a si mesmas e umas às outras. Achavam que o sagrado e o importante não era aquela manhã de primavera, não era aquela beleza do mundo de Deus, concedida para o bem de todos os seres – beleza que predispunha para a paz, a concórdia e o amor, mas sim que o sagrado e o importante era aquilo que elas mesmas inventaram a fim de dominarem umas às outras. ” Esse rico detalhamento de Tolstói me remete ao centro de cada cena... parece que estou ali... parece que fala diretamente para mim. Faço uma reflexão aqui de ser algo tão atual: que as pessoas não vivem o hoje como se fossem o último dia de suas vidas, e assim não valorizam o próximo (nem o próximo mais próximo), nem a natureza perfeita criada por Deus. É como se Tolstói estivesse nos dizendo: “não se pode consumir selvagemente como fazem, destruindo a natureza, porque ao degradá-la vocês também serão degradados. ” Quando ele fala de dominação, vejo como essa questão de poder a todo custo não é só de hoje, mas de sempre, e está ligado à concupiscência carnal humana. Isso implica em egocentrismo, levando a preocupar-se cada vez menos com o outro. Parece-me também que Tolstói tem uma forte consciência de Deus, de que foi Ele que criou o mundo, e que Ele quer o nosso bem...
Poderia escrever outro livro falando de minha experiência e aprendizado com este livro, mas vou me deter a falar dos personagens principais.
Quando Tolstói descreve o modo tão detestável e cruel como Dimitri agiu, ele fala que para se conseguir levar uma vida animada e alegre depois disso, só mesmo com o esquecimento. Assim também é na nossa vida. O esquecimento nos faz acabar com qualquer conflito. Mas será esse o melhor caminho? Pois enquanto há conflito, há uma vida viva! Quando Dimitri encontra e reconhece Máslova no julgamento, ele começa a viver o drama “o que as pessoas vão pensar de mim? ” E é exatamente assim a sociedade atual, que vive de aparências e que as ações ficam condicionadas ao que os outros esperam de você, e não o que você realmente gostaria de fazer bem no seu íntimo. Dimitri reconhece que a sujeira está em si, antes de estar nos outros. Consegue ter pena do próximo, olhar as pessoas de outro modo. É assim! Para se começar o processo de humanização é necessário ter a mesma sensibilidade de Dimitri. Retratando ainda Dimitri, Tolstói fala nas entrelinhas do valor, da importância da culpa. Nós sempre temos uma sensação ruim ao falar de culpa, mas neste caso foi a culpa que fez Dimitri ir ao encontro do outro, e assim querer libertar Máslova. Quanta coragem para isso, pois assim fica-se sujeito à incompreensão e críticas. Não é nada fácil fazer o bem.
E quando Dimitri descobre que Máslova o havia traído? Ah, meu caro, olha que lindo o que Tolstói nos coloca: quantas vezes ouvimos apenas um lado da verdade... Mas a verdade é sempre três. A minha, a sua, e a verdade como realmente é ou foi. A minha verdade nem sempre é a verdade do outro. Às vezes saímos julgando antes de ir atrás do outro lado da verdade; mas para você fazer o bem é fundamental ter isso em mente.
Na prisão Dimitri se coloca a escutar as histórias das pessoas. Creio que Tolstói coloca a importância de se ir além da aparência. Quando começa a conhecer a fundo cada um, Dimitri passa amá-las. Nunca lhe aconteceu de achar uma pessoa feia, e após conhecê-la melhor e saber sua índole, sua história de vida, achá-la linda?
Falando sobre Máslova... Trata-se de uma mulher que recebe vários nomes nesta história, nos remetendo “quem sou eu?” Também, Máslova foi criada por duas tias que a trataram de modos distintos, quase opostos, fazendo uma dualidade em sua criação... Quem é Máslova? Quem realmente somos? Alguns são vários a depender da situação...
Máslova no decorrer da história deixa de acreditar nas pessoas e no bem. Isso sim é o grau máximo da desumanização. Mas incrivelmente na prisão, naquele lugar sombrio, desumano, ela pede para fazer bem aos outros. Talvez aquele lugar a tenha feito refletir tão profundamente como nunca antes. Nesta ocasião Dimitri com toda sua insistência mexe bastante com ela, e assim ela começa a dar sinais de reavivamento... Quanta lição!
Uma situação que mexeu muito comigo por retratar algo semelhante ao que vivo, foi Tolstói falando do diretor do presídio, que é mais “piedoso” com os presos que o general. Isso porque aquele é mais próximo (no sentido físico realmente) de todos eles. Veja que quanto maior o cargo, mais longe da realidade e menos noção das coisas que acontecem. Então, se queres ser humano, se queres ser próximo, precisa pôr a mão na massa e estar na linha de frente, saber o que acontece com seu próximo, se interessar por isso.
Tolstói começa e termina este livro falando em Deus. E por mais que em algumas vezes criticasse a Igreja, ele sempre deixa claro em quem acredita. Talvez assim seja mais fácil humanizar-se: “procurai o Reino de Deus e a sua verdade, que o resto vos será acrescentado. Mas nós procuramos o resto, e pelo visto não o encontramos. “
Termino com uma parte do livro que o achei o máximo. O próprio Tolstói falando para o Labhum, para todos que se encontram no processo de humanização (tomo principalmente para mim que sou da área da saúde):
“A questão toda reside no fato de as pessoas pensarem que existem situações em que se pode tratar um ser humano sem amor, mas tais situações não existem.”