Pequenos eventos inesquecíveis

RELATO A Elegância do Ouriço

A começar pelo título, A Elegância do Ouriço, traz certa inquietação vez que o animal Ouriço não é assim nada elegante. A começar pelos espinhos que o protege. Mas o romance ficou bem adequado com esse título dado que os principais personagens Renée e Paloma se ‘protegem’ cada uma a seu modo, com suas formas de agir e ser e que nos leva do princípio ao fim a refletir sobre a vida, a convivência em sociedade, a elite, a beleza, etc.

Renée é a personagem mais inquietante desde o início. Uma senhora viúva que trabalha na portaria de um prédio luxuoso onde os moradores são todos da elite e não estão se preocupando com nada além de seus umbigos.

Paloma é a outra personagem que contrasta com Renée fazendo o leitor ‘viajar’ com seus “Pensamentos Profundos” e “Diário do Movimento do Mundo” onde, aos doze anos de idade acha que a vida não tem sentido, parecendo que “ninguém ter pensado no fato de que, se a existência é absurda, ser brilhantemente bem sucedido tem tanto valor quanto fracassar.”

Enquanto a senhora Renée nos mostra toda sua vida de dificuldade desde muito cedo quando não recebia qualquer afeto familiar, Paloma, por sua vez, filha abastada que estuda em colégio chic, a mais inteligente da turma, tem planos de dar cabo à sua própria vida e ainda botar fogo no apartamento no afã de chamar a atenção de seus pais! E diz mais: “o importante não é morrer nem em que idade se morre, é o que se está fazendo no momento em que se morre”.

Mas outros personagens também são importantes na construção desse romance. É o caso de Manuela, amiga de Renée, também trabalhadora no prédio número 7 da Rue de Grenelle, sabe lidar com os abastados do prédio de maneira aristocrática, sem se meter em nada com eles, nem se deixando levar por nada do que vê e sente no seu dia a dia.

Outra referência simbólica está nas Camélias. É até curioso ver que o Capítulo intitulado Camélias, página 27, está em branco. Por que será que a autora não descreveu nada nesta página? Talvez seja a delicadeza e fragilidade da flor simbolizando qualidade de personagens que não podem ser reveladas desde o início para que nós, leitores, descubramos no decorrer da leitura!

A trajetória de Renée que trabalhou durante 27 anos como porteira do prédio, sempre ocultando seu saber dos moradores é uma coisa que nos faz refletir. Teria ela medo de demonstrar seu conhecimento sobre tudo que conhecia desde filosofia, sociologia, economia política, arte, literatura, só porque era uma simples trabalhadora do prédio de moradores de classe alta? Ou será que tinha medo que a intelectualidade de uma pessoa simples de ser questionada, que naquele prédio jamais imaginaram que existia?

De todo modo é nas reflexões e abordagens que nos são apresentadas sob as perspectivas dessas duas mulheres, Renée e Paloma, que temos um convite a refletir sobre nossa vida, nossos comportamentos como seres sociais e, acima de tudo, sobre a existência e seus mistérios desde o mais simples e trivial evento. Enquanto Renée assiste aos filmes de Ozu em sua TV, conhece os artistas plásticos e suas obras, a literatura, tudo de maneira dissimulada em seu “esconderijo”, Paloma lê os Mangás japoneses de que tanto gosta e assiste à apresentação do Coral de sua escola, momento único em que ela se emociona pela cumplicidade do grupo, onde sente tudo muito solidário, muito comunicante e até lamenta “por que não é essa a regra do cotidiano em vez de ser um momento excepcional de coral”. Pelo jeito Paloma vê que a sociedade deveria ser como aquele coral no momento de sua apresentação, uma coisa organizada, unida, solidária, bela. Outro personagem também entrou no enredo e causou enorme mudança na vida de muitos daquele prédio, mas se integrou ao jeito de Renée e Paloma trazendo ambas para uma realidade que nem elas mesmas imaginavam. Trata-se do japonês Kakuro Ozu. Embora como morador não fuja à regra dos condôminos daquele prédio no que diz respeito à riqueza, mostrou-se totalmente oposto quanto à simplicidade e carisma de modo a impressionar, particularmente, à senhora Renée como também à Paloma.

Percebeu desde os primeiros momentos que a porteira do edifício não era nada tonta. E sua aproximação trouxe encantamento para Renée e admiração para Paloma. Seus encontros e jantares com Renée tirou-lhe as máscaras e a trouxe da clandestinidade para a realidade.

Mas as Camélias que a autora omitiu lá na página 27 agora aparecem. São os personagens mais afetos à Renée que a mesma revela com sua trágica morte. O gato Leon, Manuela, kakuro e Paloma. Esta nos ensinou que a beleza do mundo está no sempre ou nunca.

Jamais poderei esquecer essa história que evocou sentimentos e sensações profundas, pois na vida há momentos de beleza que terão significados elevados, mas também há eventos pequenos que são inesquecíveis, memoráveis. Poderia continuar escrevendo mais sobre esta obra que é leitura enriquecedora, necessária, que nos traz ensinamento, esperança, no entanto deixo por conta da própria obra que se encarregou disso com tanta propriedade.

Apenas ressalto a verdade das palavras de Paloma:

“Nada é mais duro e injusto do que a realidade humana” “os homens vivem num mundo em que são os fracos que dominam”.

São Paulo, 25 de outubro de 2017.

por Luiz Evangelista Barbosa

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