A experiência possível no Kairós, o tempo de com-viver

Morar em Macondo por algum tempo, foi um encontro com nossa humanidade, não somente no sentido mais poético, mas na completude do que é ser humano com todas as nuances e contradições possíveis. Fomos tomados pela ambivalência de pertencer a essa família.

Como seres narrativos que somos, foi possível enredar e viver os afetos da narrativa de forma muito intensa, viver o alargamento do ser proposto pelo contato com a literatura, estranhar e se ver estranho, como aquele que está fora, para em seguida sentir-se pertencente, essa dualidade que vai acompanhando cada personagem nos toma.

Confesso que o tempo junto, de troca e diálogos, se sobrepôs a própria narrativa, fui marcada e vivenciei os afetos da experiência ao ler em grupo, onde foi possível diversas leituras, é como se na troca, o olhar emprestado do outro ajudasse a preencher a lacuna, na fala e na percepção do outro pudéssemos desatar os nós.

Uma experiência que vai na contramão do que está posto, Maria Rita Khel em seu livro O tempo e o cão diz que ”O homem contemporâneo vive tão completamente imerso na temporalidade urgente dos relógios de máxima precisão, no tempo contado em décimos de segundo, que já não é possível conceber outras formas de estar no mundo que não sejam a da velocidade e da pressa.”

Sinto que ao sentarmos para experenciar literatura esquecemos o Cronos, aquele que devora e vivemos um Kairós o tempo oportuno, de sentir e refletir sobre cada personagem, um convite a diminuir os passos e entender os possíveis da literatura, sofrer com o enlouquecimento de um Buendia, que sai da vida antes de deixar de respirar, que afunda em sua loucura ou talvez em sua lucidez, e assim se mantêm alheio ao mundo como se não quisesse mais participar do coletivo. Uma escolha pelo privado?

Somos tomados pela energia empreendedora da Úrsula que pode habitar cada um de nós, e por cada sentimento que vivenciamos com os personagens, enlouquecemos um pouco, vivemos o egoísmo e a sede de poder, participamos da caliência de seus amores, choramos a morte e celebramos os nascimentos, desejamos uma profecia diferente para Macondo, desenhamos um final menos apocalíptico e pranteamos o seu fim.

Porém, acima de tudo fomos tomados pelo sentimento de solidão que acompanhou a narrativa, pensamos em nossa própria solidão, e na sina e perpetuação dessa solidão quase patológica que convivia com os Buendias, e que tão de perto nos rodeia, a solidão de existir.

E por que estávamos ali? Acima da necessidade de créditos, havia uma disposição de encontros, enxerguei a generosidade do empréstimo, nas trocas, ela se fez presente quando emprestamos nossos olhares, nosso senso de humor para que o outro sorrisse, nossa sensibilidade para que outro fosse tocado e nosso modo de ver o mundo para que o outro pudesse enxerga-lo assim como nós.

Na generosidade do empréstimo, emprestamos a nós mesmos como ouvintes e como falantes e assim num momento fora do Cronos foi possível um Kairós que abrandou a solidão da nossa existência.

Desta forma pensei em palavras que pudessem agradecer a troca e na ausência de palavras mais solenes pensei em um sincero “Deus lhe Pague” e fui inspirada a escrever essa crônica.

DEUS LHE PAGUE

Foi ali sentada na livraria a procura do próximo enredo que me levaria a novos mergulhos em mim, que resolvi tomar um café e saborear um bolo, nada mais corriqueiro. Tarde, café com bolo, folheio o livro e ele me convida, ando por suas páginas iniciais e ao final do primeiro capítulo tenho um abalroamento comigo, daqueles que te levam a um intervalo, é preciso digerir.

Estática, em outra dimensão mordo uma fatia do bolo, benditas sinapses que por vezes trazem consigo o prazer de rememorar, minha memória gustativa foi acessada por algum ingrediente especial, ou por puro sugestionamento do que o livro despertara, volto, e sinto o sabor já vivido.

O tempo leva, não apaga, a memória guarda, estou na pequena cozinha e vem o pedido de filho: __ Mamãe faz um bolo?

__ Não temos tudo, falta açúcar.

Os olhos pidões do menino comovem o coração e ela resolve.

__ Vá pedir um copo de açúcar emprestado para a vizinha, vá na Maria, ela deve estar em casa.

Sorriso largo saio em disparada em busca do que não tinha. Quando retorno, a certeza do compartilhamento já a fez adiantar a receita, o garfo tilintava na tigela, como numa dança, sem perder o ritmo, era música, o branco da clara dançando, virando neve, vai crescendo devagar se aprontando para afofar o bolo.

O emprestado adoça a receita, põe sabor no preparo, que se demora no tempo do menino. O velho relógio na parede da cozinha parece ficar sonolento com o calor que invade o lugar, aparentemente precisa de conserto. Os ponteiros, pesados e vagarosos sentem a preguiça da tarde e quase se recusam a caminhar para o nada.

Enfim, o aroma de bolo que acabou de nascer, inunda a casa, que por sua pequenez não comporta todo aquele cheiro bom que sai a passear pela vizinhança anunciando que por ali tem uma criança feliz.

Gosto de lembrar do movimento do virar a forma no prato: PLAC-TUM! A fumacinha que subia precedia a célebre frase que teimava em se repetir: __ Agora esperar, bolo quente dá dor de barriga.

No tempo da mãe o bolo é repartido, uma boa fatia é embrulhada no guardanapo alvejado ao sol e enxaguado com anil, e o nosso sabor vai ser compartilhado. Vou num pé e volto noutro, quase não ouço o obrigada.

Finalmente sentar e saborear.

Agora, saboreio sozinho o bolo e a experiência da leitura. Fico aguardando que nos encontros possíveis, ainda haja quem seja capaz de emprestar sem desejar receber de volta. Aguardo.

por Vilma Ribeiro Gomes
Relato baseado no ciclo LABORATÓRIO DE HUMANIDADES XII, Ciclo de Encontros e Discussões sobre Humanização em Saúde (1º semestre de 2018), Tema: Solidão e Humanização (Livro: Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez).

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