Era Uma Vez... Narrativas em Medicina
Maria Auxiliadora Craice de Benedetto - Médica de Família e Coordenadora do Departamento de Humanidades da SOBRAMFA (Sociedade Brasileira de Medicina de Família)
Deborah Garcia - Pediatra e Médica de Família da SOBRAMFA
Pablo González Blasco - Médico de Família e Diretor Científico da SOBRAMFA
PELAS RAÍZES HUMANÍSTICAS
Alguns antropólogos consideram os seres humanos como contadores de histórias, pois o ato de contá-las está fortemente arraigado ao seu âmago. A imagem de nossos ancestrais reunidos ao redor das fogueiras para contar e ouvir histórias é de alguma forma familiar a todos nós e evoca profundas memórias. Dessa forma foram criadas metáforas para explicar o que era incompreensível e misterioso. A identidade dos povos têm sido construída através de histórias transmitidas de geração à geração. Estas mantêm viva a memória dos seres humanos e atribuem sentido e significado a cada ato ou ocorrência da vida.
Para Higino Marin Pedreño, a definição de ser humano é: bípede com mãos que conta histórias. O autor afirma: “Na vida – como nos contos ‘As Mil e Uma Noites’ – para se seguir vivo cada dia, se há de saldar com um conto”. As histórias permitem que o caos se transforme em ordem e através delas os indivíduos, além de recordar, podem reescrever suas vidas, atribuindo-lhes significado. (1) A literatura, o teatro e o cinema nada mais são do que um aprimoramento da arte de contar histórias. Ao longo dos séculos, as funções das histórias têm se ampliado e estas, atualmente, ocupam espaços essenciais e bem definidos em diferentes setores da sociedade.
Pacientes também são considerados contadores de histórias por alguns autores. (2) Pessoas doentes têm necessidade não apenas de contar a história de sua doença, mas também de compartilhar sentimentos, crenças e fatos que julgam estar associados a seus sofrimentos. No passado, quando os recursos diagnósticos e terapêuticos eram bem mais limitados que hoje, muitas vezes, ouvir o paciente com atenção e empatia era o único expediente possível em algumas situações médicas. Ainda hoje, mesmo tendo à disposição inimagináveis recursos tecnológicos, pacientes não confiam em médicos que não olhem em seus olhos, não prestem atenção a suas histórias e desconsiderem seus sentimentos.
Atualmente, a medicina é dominada por avanços tecnológicos e enfatiza a especialização. A busca de um conhecimento cada vez mais profundo e detalhado acerca do ser humano levou à necessidade da fragmentação. (3) A atividade clínica moderna é baseada nos princípios da Medicina Baseada em Evidências. Neste modelo a história do paciente se converte em uma questão clínica cuja resposta deverá ser obtida a partir das evidências de maior relevância. As evidências de maior relevância provêm de estudos randomizados ou de corte aplicados a populações. Esse modelo tem oferecido inúmeras vantagens e tem sido o responsável pela abolição ou diminuição de grande parte do sofrimento humano decorrente de traumatismos e enfermidades. Mas alguns questionamentos começam a emergir a partir do ponto em que, na prática clínica, as evidências obtidas a partir de estudos populacionais deverão ser aplicadas em um contexto individual repleto de nuances que vão muito além do âmbito em que tais estudos foram realizados. (4) E, intuitivamente, médicos e pacientes sentem que algo está faltando.
A prática da medicina envolve o intercâmbio entre pelo menos duas pessoas – médico e paciente. Por muito tempo, o relacionamento entre as pessoas doentes e os que se têm proposto a praticar as artes e/ou ciências da cura, não importa em que sistema isso ocorra, tem sido considerado especial. É incontestável a ideia de que o cultivo de um bom relacionamento médico-paciente sempre foi, é e sempre será a pedra angular de uma boa prática da medicina (5), a qual requer uma adaptação das evidências científicas em um contexto individual. O maior desafio é aquele paciente singular que o médico tem diante de si. Existem muitos textos sobre fisiopatologia e terapêutica do diabetes mellitus, por exemplo, e todos eles são similares. No entanto, é inútil conhecer o melhor manejo em relação à determinada doença se o paciente não toma adequadamente os medicamentos prescritos porque está deprimido ou porque tem um sistema de crenças, geralmente decorrente de seu contexto cultural ou familiar, que impede a sua adesão ao tratamento. Cada indivíduo que vivencia determinada enfermidade tem uma história única. É essencial que o seu médico seja capaz de ler e compreender esse texto inédito, muitas vezes escrito nas entrelinhas. E, certamente, essa compreensão depende do cultivo de um bom relacionamento médico-paciente.
Acreditamos que dentro do atual padrão predominante de ensino e prática da Medicina se é possível incorporar e adaptar metodologias novas ou antigas com o objetivo de enriquecer a prática clínica. Certamente, modelos que proporcionem o aprimoramento da relação médico-paciente seriam úteis nessa abordagem. Por isso, nas últimas décadas, metodologias tais como Medicina centrada na pessoa (6) e Medicina Baseada em Narrativas (7) começam a despertar a atenção e têm sido desenvolvidas ou aperfeiçoadas. A prática da Medicina centrada na pessoa requer um conhecimento do ser humano em sua totalidade, levando-se em conta suas dimensões física, emocional, mental, espiritual, cultural, familiar e social. Atentas a essas questões, muitas escolas médicas começam a incluir em seu currículo o estudo das humanidades o qual é essencial para a formação de um médico compassivo e, ao mesmo tempo, eficiente. Ouvir o paciente com atenção e empatia é outra maneira de se obter esse conhecimento mais amplo do ser humano, tão necessário para a prática da Medicina centrada na pessoa. Quando encontram profissionais receptivos, os pacientes se põem rapidamente a seguir sua tendência natural e começam a contar histórias – histórias de suas doenças, seus sofrimentos e suas vidas, e histórias relacionadas a suas crenças. A questão é: o que fazer com essas histórias que, muitas vezes, aparentemente nada ter a ver com suas histórias clínicas?