Escola Paulista de Medicina
Postgraduate Program Name

2003 - Gallian - Primeiras experiências de ciência européia nos trópicos: Maurício de Nassau, Willem Pies e George Marcgrave

Primeiras experiências de ciência européia nos trópicos: Maurício de Nassau, Willem Pies e George Marcgrave

Claudio Marcos Teixeira de Queiroz*
Dante Marcello Claramonte Gallian**

* Mestre em Farmacologia e doutorando em Neurologia Experimental pela UNIFESP. E-mail: queiroz@ecb.epm.br.
** Doutor em História Social pela FFLCH-USP. Docente e Diretor do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da UNIFESP. e-mail dante.cehfi@epm.br 

1. Os holandeses no Brasil: o conde Maurício de Nassau (1604-1679)

A presença colonial holandesa no Brasil aconteceu entre os anos de 1624 e 1654. Apesar de temporalmente curto quando comparado com os aproximados quatrocentos anos da ocupação portuguesa, o período holandês no Brasil deixou para a posteridade um legado científico significativo, porém curiosamente pouco conhecido como veremos adiante. Dos 30 anos da presença holandesa, os sete anos (1637-1644) passados sobre o comando do conde João Maurício de Nassau foram sem dúvida os de maior desenvolvimento para a colônia, que chegou a ocupar territórios que se estendiam desde a margem esquerda do rio São Francisco na Bahia (limite sul) até o Maranhão, passando por Sergipe, Pernambuco e Ceará [i] .

Após algumas tentativas frustradas em estabelecer sítio na Bahia (entre os anos 1624 e 1630), a 14 de fevereiro de 1630, tropas holandesas apresentam-se na costa de Pernambuco com o objetivo de atacar Olinda. A cidade portuguesa mais importante da região não resiste ao ataque de 3.000 homens comandados pelo general Pieter Andrianzoon e é tomada sem opor resistência [ii] . Entretanto, tropas portuguesas deslocam-se para as cercanias da cidade e constituem um cerco à invasão holandesa. Em 1632, com o auxílio do mameluco Domingos Fernandes Calabar, os holandeses rompem o cerco formado pelos portugueses e, em sucessivas vitórias, expandem o domínio holandês em solo brasileiro. Em 1637, os holandeses consideram seu estabelecimento em terras tropicais consolidado e decidem fundar em Recife a sede de seu governo na América. Provavelmente, dentre outros motivos, os holandeses deixam Olinda por causa de seus íngremes morros, uma geografia típica de cidades portuguesas [iii] . Por outro lado, a cidade de Recife assemelha-se a Amsterdã, com seus canais recortando a cidade, favorecendo assim a adaptação holandesa. Recife ainda apresentava-se mais bem protegida militarmente dos ataques marítimos pois a poucos metros da praia, a presença de um grande banco de recifes (de onde vem o nome da cidade) impedia a aproximação de qualquer embarcação, que só alcançavam a cidade durante a maré baixa, quando uma passagem aparecia. Sobre essa exuberância da natureza podemos encontrar uma bela descrição de Pies, quando descreve o “Coral Branco do Brasil”. Escreveu ele, “em certos lugares de Paranambuco (sic), junto daquela rocha vulgarmente chamada Reciffo (sic), quando a praia está menos coberta d’água, em virtude da vazante, vêem-se por um céu sereno, no fundo, infinitas excrescências pétreas formadas à feição, ora de arbúsculos, ora de couve ciprina. E crescem diversamente, por novo e admirável capricho da natureza, em forma de alga, fungos e plantas marítimas (a que, a modo de cristal, se conglutina, por força do Sol, a água salgada, paulatinamente, em cada maré crescente).” [iv]

Assim, a 23 de janeiro de 1637, desembarcava na bela Recife o “homem mais notável de quantos já se envolveram na indústria do açúcar” [v] , o conde João Maurício de Nassau, governador-geral da colônia holandesa no Brasil. Aportava no Novo Mundo não só um general, mas principalmente um humanista [vi] , disposto realmente a explorar as terras de Santa Cruz, não poupando energia para o crescimento e o desenvolvimento da colônia. Segundo Boxer, “Durante os sete anos de seu governo, Maurício de Nassau melhorou e ampliou a cidade, construindo novas (e pavimentadas) ruas, estradas e pontes. Na ilha de Antonio Vaz, lançou os fundamentos de uma nova cidade, a que deu o nome de Mauritia, ou Mauritsstad, cuja localização corresponde ao coração da moderna cidade de Recife. Construiu nela duas espaçosas casas de campo, uma das quais provida de um bem sortido aviário, além de um jardim zoológico e outro botânico, onde deu expansão aos seus gostos, cultivando plantas frutíferas exóticas e transplantando árvores tropicais em larga escala. Fundou também o primeiro observatório astronômico e metereológico do Novo Mundo, nele sendo guardados os registros relativos aos ventos e às chuvas. Teve mesmo em mente a fundação de uma universidade, que seria freqüentada tanto pelos holandeses protestantes como pelos portugueses católicos, projeto que todavia nunca foi além do papel.” [vii]

Além da grande impulsão para o crescimento físico da cidade, Maurício de Nassau ainda revolucionou o cenário legislativo da colônia, reduzindo impostos e concedendo maior liberdade de crédito aos agricultores para que estes pudessem comprar mais escravos e outros insumos. Ainda, criou os Conselhos Municipais e Rurais com o objetivo de aproximar raças (ameríndios e europeus) e crenças (protestantes e católicos), para que trabalhassem de forma cooperativa [viii] . "Sua [Nassau] partida", relata Boxer, "foi chorada com sinceridade em toda a colônia, indistintamente pelos calvinistas holandeses, pelos portugueses católicos e pelos tapuias antropófagos” [ix] .

2. As primeiras incursões científicas no Brasil

Concorde com o seu caráter humanista, Maurício de Nassau, além de todas estas realizações, desenvolveu um extraordinário ambiente científico naquela Recife recém conquistada. Há relatos que sugerem que o conde estivesse cercado por um grupo seleto de quarenta e seis homens [x] formados, cientistas, artistas e artesãos, trazidos dos países baixos e que exerciam função determinada para a qual recebiam vencimentos.

Dentro do grupo de pintores (seriam seis ao total), destacam-se Frans Post (1612-1680), de Leiden, especialista em paisagens e Albert Eckhout (1637-1664; este, talvez discípulo de Rembrandt), responsável pela caracterização do povo brasileiro e suas etnias. Presente à comitiva, encontravam-se ainda Pieter Post, irmão de Frans Post, responsável pelo planejamento arquitetônico e urbanístico das novas cidades da colônia holandesa, Hendrich Cralitz, jovem geógrafo alemão vitimado pelas “febres” pouco tempo depois de haver chegado, o capelão Franz Plate e Elias Herkman, autor de uma monografia sobre a Paraíba [xi] , além dos poetas Gaspar van Baerle e Justo van de Vondel [xii] . Destaca-se ainda a presença de Willem Pies [xiii] (1611-1678), de Leiden, que ficou encarregado de estudar as doenças e remédios tropicais, as abordagens terapêuticas dos ameríndios e seus costumes e George Marcgrave (1610-1644), de Leibstad, incumbido de recolher exemplares sobre a fauna e flora brasileira, bem como realizar observações astronômicas e metereológicas.

De acordo com o professor Juliano Moreira, o conde Maurício de Nassau solicitou a Albert Conrad Burg, burgo-mestre de Amsterdã e membro do Conselho dos XIX e a Johannes de Laet, um dos melhores cronistas da Companhia, a constituição de uma equipe para explorar o Novo Mundo com fins puramente científicos. Juliano Moreira ainda sugere que Willem Pies era o encarregado de chefiar essa missão.

Quando buscamos no próprio prefácio do livro de Pies as características dessa empreitada científica [xiv] , encontramos um discurso que eleva as qualidades de seu mecenas, o conde Maurício de Nassau, comparando-o a Alexandre Magno quando comenta que “[Alexandre Magno] inflamado no desejo de conhecer a natureza dos animais, encarregou Aristóteles dessa indagação e lhe colocou sob as ordens alguns milhares de homens para lhe fornecerem caças, aves e peixes”. Provavelmente, Pies se refere às suas explorações científicas com a escolta e proteção do exército de Nassau.

3. Os livros de Pies e Marcgrave

A primeira edição e publicação das observações feitas por Pies e Marcgrave foi realizada por Johannes de Laet (1593-1649), diretor e escritor [xv] da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais (Geoctroyerde Westindische Compangnie), em 1648 nas cidades de Amsterdã e Leiden. A obra em dois volumes intitula-se Historia Naturalis Brasiliae [xvi] , sendo o primeiro volume De medicina brasiliensi de autoria de Willem Pies e o segundo volume Historiae rerum naturalium Brasiliae de autoria de George Marcgrave [xvii] .

O primeiro volume, De medicina brasiliensi, é formado por quatro livros ou seções totalizando 133 páginas. O livro primeiro trata de Aëre, Aquis et Locis (Do ar, das águas e dos lugares). O segundo, De Morbis Endemiis (Das Doenças Endêmicas), é dividido em 22 capítulos [xviii] e pode-se dizer que é primeiro relato sobre doenças brasileiras [xix] e suas sintomatologias específicas. O livro terceiro, De Venenatis et Antidotis (Dos venenos e seus antídotos) descreve sobre a “magna abundância [que] produz todo o globo terrestre de venenos, que nos oferecem a cada passo e a mancheias os animais, as plantas e os minerais”. Finalmente, o livro quarto, De Facultatibus Simplicium (Das propriedades dos símplices [xx] ) contendo 65 capítulos, cada qual descrevendo as propriedades terapêuticas de árvores, raízes, arbustos, frutas e mel. Ressalta-se deste livro os dois primeiros capítulos, De Saccharo e De Mandihoca, que fornecem um relato detalhado das tecnologias envolvidas na feitura do açúcar e na manipulação da mandioca. Sobre esse importante tratado médico comenta Juliano Moreira: “Esta obra, evidentemente magistral, reexaminada com afinco, evidenciada a cada perquisição, excelências novas, e por isso, ainda é hoje uma das mais lídimas glórias da literatura médica holandesa. A Pies devemos uma descrição, exata e minudente, das endemias então reinantes no Brasil e dos meios de tratá-las. Observou a bouba, o tétano, paralisias várias, a disenteria, a hemeralopia, o máculo. Descreveu a ipeca e sua qualidade emeto-catártica, das quais já se utilizavam os aborígines muito antes do célebre médico Adriano Helvetius (...) haver recebido de Luís XIV mil luíses de ouro, títulos e honrarias, por haver descoberto exatamente aquelas mesmas virtudes terapêuticas. (...) Mostrou ainda a ação terapêutica do coco de andaaçú, da copaíba, do tipi, do sassafrás, da japecanga, da capeba, do jaborandi. A propósito deste último vegetal, Pies, em vários lugares de sua obra faz menção muito nítida de suas propriedades sialagogas [xxi] e diaforéticas [xxii] , sendo admirável, como dizem os médicos holandeses Bauer e Stokvis, tenha a medicina levado tantos anos para descobrir estes fatos” [xxiii] . Continua assim o professor e psiquiatra Juliano Moreira, lembrando ainda que foi Pies o primeiro a pressentir as propriedades pépticas da Carica papaya, donde hoje sabe-se das ações da papaína.

O segundo volume da Historia Naturalis Brasiliae, de autoria de George Marcgrave, intitulado Historiae rerum naturalium Brasiliae, conta com 303 páginas e 429 figuras, divididos em oito livros e um apêndice, a saber: Tres priores agunt de Plantis (os três primeiros livros sobre plantas, contendo no primeiro 146 ervas com 86 figuras, no segundo 48 arbustos e plantas frutíferas com 39 gravuras e no terceiro 104 árvores, da quais 75 estão gravadas), Quartus de Piscibus (quarto sobre peixes e crustáceos, quer do mar, quer dos rios, sendo 105 descrições de peixes e 26 de crustáceos), Quintus de Avibus (quinto sobre as aves, com 115 descrições e 54 gravuras), Sextus de Quadrupedibus et Serpentibus (sexto sobre quadrúpedes e répteis, com 46 e 19 descrições e 26 e 7 gravuras, respectivamente), Septimus de Insectis (sétimo sobre insetos, com 55 descrições e com 29 ilustrações) e Octavus de ipsa Regione, et illius Incolis (oitavo sobre a região, os índios e os atuais habitantes, contendo 5 ilustrações). O apêndice trata dos aborígines do Chile e contém duas figuras, sendo uma delas a representação gráfica mais antiga da Lhama [xxiv] . Portanto, a obra aglutina 429 figuras, sendo destas 200 de vegetais e 222 de animais. Conforme afirmado por Juliano Moreira, “estas 668 espécies ou variedades eram completamente novas em Sciencia (sic) e das 422 representadas, opinam naturalistas de mérito, foram pela primeira vez desenhadas” [xxv] . Assim, vê-se por esta afirmação a importância do trabalho de Marcgrave para a história das ciências naturais européias e brasileiras.

Em 1658, Pies realiza a segunda edição de sua obra, com outro nome [xxvi] e alterações importantes que a descaracterizam a ponto de ser considerada uma nova obra (porém de qualidade inferior quando comparada à primeira edição). Com a desculpa de que Historia Naturalis Brasiliae havia sido feita as pressas e com desleixo, sendo a parte escrita por Marcgrave mais valorizada pelo editor Johannes de Laet [xxvii] , em detrimento da correspondente de Pies, este lança sua segunda edição incorporando, como seu, grande parte dos trabalhos de Marcgrave, citando-o apenas o nome. Nesta época, Laet já estava morto impossibilitando o controle editorial e a justa nomeação dos méritos. De fato, o médico Christiano Marcgrave (irmão de George) acusou na época Pies de plágio, sendo que no prefácio da sua Opera medica, referindo-se a Linneu, ao descrever a Pisonia (planta das famílias das Nyctagineas) Christiano escreve: “Pisonia est arbor nimis horrida. Horrida certe memoria viri si vera, quœ Marcgravio affinis objicit, Pisono, quod Pisonus omnia sua a Marcgravio affins objicit, Pisono, quod Pisonus omnia sua a Marcgravio post mortem habuerit” [xxviii] .

De inédito, a segunda edição contém as observações astronômicas pioneiras sobre o hemisfério austral, do livro escrito (e agora assinado) por Marcgrave intitulado Tratatus topographicus et meteorologicus Brasiliae cum observatione eclipsis solaris. Além das observações realizadas por Marcgrave no primeiro observatório do Novo Mundo e do hemisfério Sul, (construído sob o comando do já citado Pieter Post) nas torres de Vrijburg [xxix] , em Mauritsstad, na ilha de Antonio Vaz [xxx] , este livro discorre sobre o eclipse de 1640. Diz-se que Maurício de Nassau encarregou aos capitães de seus navios para que observassem com cuidado os eclipses do Sol e da Lua, bem como outros fenômenos celestes. Muitos desenhos do eclipse solar de 1940, de diferentes regiões, chegaram assim, as mãos de Marcgrave [xxxi] . O Tratatus topographicus (...) solaris é o terceiro tratado astronômico de Marcgrave, que juntamente com outros dois livros, formariam o Progymnastica mathematica Americana [xxxii] , que esperava publicar quando chegasse a Holanda. Os outros dois livros, desaparecidos até o momento, trariam uma descrição de todas as estrelas vistas no hemisfério sul entre o trópico de Câncer e o pólo Antártico, além de uma seção sobre geografia e uma demonstração sobre geodésia. A segunda edição da obra de Pies termina com uma contribuição de Bontius, em botânica e um capítulo sobre a Mantissa aromatica [xxxiii] .

No escorço biográfico feito por Taunay, observamos as declarações de E.W. Gudger (biógrafo de Marcgrave) sobre esta edição: “Não somente não se trata da melhoria do trabalho de Marcgrave como ainda, e em vários pontos, é-lhe incontestavelmente inferior ao tentamen de Pies. A obra de Marcgrave sobre as plantas do Brasil, aí se acha resumida, perdendo identidade ao se misturar com os dados de Pies, no que diz respeito à medicina. A parte zoológica foi todavia mais prejudicada, visto ser Pies ainda peior (sic) zoólogo do que botânico!” [xxxiv] Por outro lado, lemos em outra citação do professor Gudger [xxxv] que “[a Historia Naturalis Brasiliae, de 1648] foi provavelmente o trabalho mais importante aparecido sobre historia natural depois do renascimento das letras, e, até que se conhecessem as explorações de Neuwied, seguramente o trabalho mais importante relativo ao Brasil”.

4. Repercussões nos meios científicos europeus

Na obra de Pies pode-se encontrar citações que remetem aos antigos mestres gregos, tais como Hipócrates, Aristóteles e Galeno. Neste sentido, pode-se dizer que Pies não se afastou completamente do tipo de ciência feita na Europa. E nem poderia. Em sua descrição da etimologia da opilação do fígado e do baço [xxxvi] encontramos termos característicos da medicina aristotélica e galênica, tais como “calor natural”, e uma cadeia de eventos bastante “lógica”. Assim, comentando sobre soldados acabrunhados pela magreza, encontramos a contundente explicação: “O estômago a tal ponto débil e privado do calor natural, que mais facilmente acumula, que digere os alimentos, é incapaz de exercer convenientemente as suas funções; por onde, impedida a primeira digestão, e ficando o quilo mal distribuído, por causa da obstrução do mesentério, não pode ser corrigido pela segunda [digestão], no fígado. A causa antecedente principal deste mal é a penetração do frio, que paralisa a transpiração e a circulação; causa porém composta e mista, do dissoluto e desordenado modo de viver” [xxxvii] .

Pies demonstra ainda estar ao corrente dos mais recentes “avanços” da ciência, citando ao final desta frase o trabalho de Hofmannus, que havia provado “com elegância” que o ar atraído pela respiração “não penetra menos o estômago e os intestinos, que os pulmões” [xxxviii] . Por outro lado, Pies não deixa de valorizar o conhecimento dos ameríndios e assim, continua o texto com a seguinte terapêutica: “pó de Ubiraee, escória de ferro, duas onças [xxxix] de cada uma; milho índico uma onça; favas menores, sementes e polpa de abóbora amarga e folha de sena, uma onça de cada uma. De tudo bem triturado e reduzido a pó ministre-se uma onça à manhã e à tarde, com igual quantidade de papas de Tipioca com açúcar”. Ainda neste capítulo temos a constatação de que Pies creditava uma grande importância à experimentação, com o intuito de adequar os ensinamentos dos antigos: “Pelo que é aconselhável às vezes dar uma decocção [xl] simples de salsaparrilha, observando religiosamente o que foi dito, uma vez eliminada a raiz do mal e este vencido pelas prescrições da arte. Embora porém, estes medicamentos e métodos para os usar não sejam destituídos nem da razão nem da experiência, e não possam ser atacados, é contudo necessário completá-los pela regra da razão, e acrescentar ou eliminar o seu tanto ao experimentado.”

Percebemos aqui um exemplo muito pertinente das dimensões culturais do processo de construção do conhecimento científico no século XVII. Os pressupostos clássicos em confronto não só com a realidade empírica, fruto da investigação, como também com uma realidade "científica" antropologicamente distinta: a "ciência" do Novo Mundo.

Conforme Juliano Moreira, “aos dois, Pies e Marcgrave devemos a primeira noção de que pelos dentes da cobra era injetado o veneno ofídico ao lugar mordido. Em suas páginas lemos a narração dos efeitos venenosos do sapo cururu, Bufo viridis, vulgaris, ou musicus, no qual descobriram mais tarde os chimicos (sic) a butofalina (de efeitos um tanto análogos a digitalina)” [xli] . Já Boxer pondera que “Pies contribuiu para a Historia Naturalis Brasiliae com uma longa seção intitulada De Medicina Brasiliensi, que ficou sendo trabalho autorizado de medicina e higiene até o século XIX”. [xlii] De fato, Francisco Moreno-Carvalho nos lembra, em um interessante trabalho sobre a vida do médico português Zacuto Lusitano, a especial atenção dispensada naquela época para as observações realizadas nos trópicos, confirmando a presença do conhecimento sobre plantas medicinais nos escritos de Zacuto em latim [xliii] , sendo estas referências provenientes de fontes no Brasil Holandês e não Português.

Até mesmo a quase 200 anos da publicação dos trabalhos de Pies e Marcgrave, encontramos ainda relatos de valorização de suas obras. Muitos foram os pesquisadores que ao longo da história apregoaram a importância do trabalho de Marcgrave para a botânica e para a zoologia. Dentre eles, destacam-se o zoólogo Martius Lichtenstein, professor e diretor do Museu Zoológico de Berlim em uma série de palestras à Real Academia de Ciências de Berlim entre 1814 e 1826 [xliv] , o botânico von Martius em palestras na Real Academia de Ciências de Munique em 1853-1855 onde mostrou a importância da obra no que diz respeito às plantas brasileiras e ainda em homenagem a George Marcgrave foi criada em botânica, por Linné, a família das Margraviaceas, cujo gênero é amplamente disseminado no Brasil [xlv] .

Dentre os brasileiros, destacam-se o já comentado discurso do psiquiatra Juliano Moreira e do artigo de autoria de Rodolpho von Ihering (ambos publicados na Revista do Museu Paulista), além de dois ótimos resumos biográficos, um sobre George Marcgrave e outro sobre Willem Pies [xlvi] . Encontramos ainda uma citação sobre os dois "aventureiros da ciência" no livro Os holandeses no Brasil do Visconde de Porto Seguro.

Apesar de imensa riqueza que o livro de Pies contém, pouco tem se falado de sua obra ao longo desses quase 4 séculos, além do já comentado anteriormente. Publicada pela última vez em 1948, esta nossa primeira História Natural apresenta-se como um marco não apenas para a história da ciência no Brasil, mas também para a história da ciência ocidental, num momento em que as profundas transformações ocorridas com a Revolução Científica na Europa, se apresentam as realidades e os saberes do Novo Mundo. Aprofundar o seu estudo certamente pode ajudar a esclarecer a contribuição do Novo Mundo no contexto das revoluções do século XVII.

Link do artigo
Referências

© 2013 a 2024 - Universidade Federal de São Paulo - Unifesp
Rua Loefgreen, 2032 - Vila Clementino, São Paulo - SP 

Please publish modules in offcanvas position.