Por Prof. Dr. Valdir Reginato
A identificação dos “primeiros médicos” com a figura de sacerdotes, xamãs, e curandeiros, confunde-se na história, quando verificamos que os males do corpo estavam muito relacionados com a interferência de deuses e situações místicas, incompreensíveis no mundo natural. Mesmo com o desenvolvimento da ciência manteve-se sempre um vínculo entre a cura do corpo e a condição de crença do paciente em um campo sobrenatural, onde mediante a sua fé ou a intercessão de orações e cultos poderia trazer o paciente encontrar a saúde, principalmente quando esgotados todos os recursos conhecidos. (1)
Muito recentemente, no século XX, o desenvolvimento tecnológico acelerado, favoreceu o acesso a uma visão microscópica da doença, acrescida de uma leitura bioquímica dos fenômenos, promovendo no campo da saúde uma reinterpretação dos mecanismos fisiopatológicos. Principalmente a partir do século XVI com o incremento de instrumentos que favoreceram uma visão mais ampla, e ao mesmo tempo fragmentada do ser humano, a abordagem do problema saúde-doença passou a ser analisada basicamente dentro de uma avaliação do “desequilíbrio bioquímico”, onde mediante a ação de fármacos cada vez mais específicos, poderíamos favorecer a homeostase necessária ao organismo. Mesmo as doenças infecciosas minimizaram a idéia do “terreno favorável de predisposição”, ganhando cada vez mais força o poder da vacinação e da ação de antibióticos, para controlar o crescimento de agentes nocivos, todos com ações no campo biomolecular. (2, 3, 4)
Neste contexto de disputa pelo sucesso terapêutico baseado na linguagem bioquímica da vida, cuja ação oferecida por drogas específicas e, mais recentemente, por possíveis interferências nos mecanismos envolvendo o próprio código genético, tendeu-se a marginalizar a ação do “sobrenatural”, no campo da transcendência, como fator de influência no processo de cura. Entretanto, apesar da pesquisa científica, por longas décadas, ter mantido um silêncio a este respeito, para uma boa parcela dos pacientes, nunca deixou de existir a consciência da participação deste elemento misterioso, imponderável, não quantificável pela metodologia científica, que é a condição da fé, descrita por Sir William Osler e publicado British Medical Journal em 1910 com o título “The faith that heals”. Advertia o autor a necessidade de o clínico estar atento a esta “força poderosa” presente nos pacientes.
Nos EUA uma pesquisa feita pelo Instituto Gallup encontrou que 80% dos americanos diziam que a frase “eu recebo bastante conforto e apoio de minhas crenças religiosas” era verdadeira, sendo que a partir dos 65 anos o encontrado era 87%. Mais recentemente Koenig verificou que 90% dos pacientes dizem que crenças religiosas e suas práticas são importantes formas pelas quais elas podem enfrentar e aceitar melhor suas doenças físicas, e mais de 40% indicam que a religião é o fator mais importante que os ajudam nessas horas (5). Assim, observa-se uma reavaliação da influência da espiritualidade nas condições de vida cotidiana, incluindo-se a sua participação no processo saúde-doença.(6, 7)
Estas referências, que a cada ano recebem novos reforços pela grande quantidade de trabalhos que têm sido publicados na literatura americana, principalmente, incentivaram à Escolas Médicas incluírem em sua grade curricular disciplinas que introduzissem o tema da Espiritualidade. Para Association of American Medical Colleges:
“Espiritualidade é reconhecida como um fator que contribui para a saúde de muitas pessoas. O conceito de espiritualidade é encontrado em todas as culturas e sociedades. Ela é expressa nas buscas individuais para um sentido último através da participação na religião e ou crença em Deus, família, naturalismo, racionalismo, humanismo, e nas artes. Todos estes fatores podem influenciar na maneira como os pacientes e os cuidadores profissionais da saúde percebem a saúde e a doença e como eles interagem uns com os outros.” (8 ,p. 352-7)
Este seria o motivo pelo qual A Association of American Colleges coloca como sendo fundamental na formação dos acadêmicos de medicina uma formação adequada na área da espiritualidade:
“Os estudantes devem ser advertidos que espiritualidade e crenças culturais e suas práticas, são elementos importantes para a saúde e o bem-estar de muitos pacientes. Eles deverão ser advertidos que é necessário incorporar esta espiritualidade, e crenças culturais e suas práticas, dentro dos cuidados dos pacientes numa variedade de contextos clínicos. Eles reconhecerão que sua própria espiritualidade, crenças e práticas, possivelmente afetarão os caminhos de relacionamento e cuidados com os pacientes”. (8, p. 352-7)
As advertências acima encontram respaldo em Jung, ao refletir sobre a maneira como o profissional acaba percebendo a interferência que possa ocorrer quando do relacionamento com o paciente:
“Jung também questiona sobre os valores e crenças do profissional, pois, segundo ele, querendo ou não, o profissional está envolvido com suas convicções, tanto quanto o paciente, e o mais importante não é a “técnica utilizada”, mas a pessoa que usa determinado método. Por isso, o profissional, eticamente, está obrigado a um conhecimento e a uma crítica de suas convicções pessoais, filosóficas e religiosas, tanto quanto um cirurgião está obrigado a uma perfeita assepsia.” (9 , p. 63-85)
Há menos de vinte anos eram poucas as faculdades de Medicina norte-americanas que apresentavam essa disciplina em seus currículos. Atualmente, mais de 100 das 125 escolas médicas incluíram o conteúdo de espiritualidade em suas grades. Além disso, torna-se cada vez mais frequente a importância dada a este tema junto à classe médica (10, 11)
Segundo Puchalski, diversas associações norte-americanas têm reconhecido a necessidade da valorização do ensino da espiritualidade na formação do médico. Ela cita em seu artigo as manifestações de várias entidades:
“Para muitos pacientes, cuidado pastoral ou de outros serviços espirituais são parte integral dos cuidados de saúde e da vida diária. O hospital está capacitado para prover estes cuidados para pacientes que o desejarem.” The Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organizations. “É de consenso que no término da vida os médicos deveriam estender seus cuidados, para aqueles com doenças graves, para atendê-los nos sofrimentos psicossocial, existencial e espiritual.” The American College of Physicians. “Médicos precisam ter compaixão e empatia no cuidado com o paciente... Em todas as suas interações com pacientes, eles precisam buscar compreender o significado das histórias dos pacientes no contexto de suas crenças e de seus valores familiares e culturais... Eles precisam continuar cuidando dos pacientes moribundos mesmo quando a terapia específica para a doença está longe de ser alcançada ou da desejada.” Association of American Medical Colleges (AAMC) (8. p. 352-7)
Puchalski refere ainda que a Association of American Medical Colleges recomenda um Curriculum de Espiritualidade para escolas médicas com objetivos específicos. Recomenda que os estudantes de medicina tenham habilidade em fazer uma “história espiritual”, onde se compreenda a dimensão espiritual do paciente, se há qualquer relação com o processo de adoecer do mesmo, assim como se o paciente se utiliza de sua crença como instrumento de esperança para a terapia, valendo-se de seus orientadores espirituais. Considera que a questão da espiritualidade na vida pessoal dos estudantes possa promover um melhor desenvolvimento profissional do mesmo. (8. p. 352-7)
Neste panorama, urge um preparo adequado para os alunos para a discussão de temas que necessariamente impõe uma visão além da científica, mas no campo da espiritualidade por parte dos envolvidos; assim como uma preparação para acolher aos pacientes que apresentam o seu sofrimento numa linguagem indecifrável para os estudantes.
A dimensão da espiritualidade mais do que acrescentar um novo conhecimento é a maneira de ver o universo dos acontecimentos numa nova perspectiva, outrora reduzida a uma visão tecnicista, onde uma abertura para a reflexão sobre questões essenciais e existenciais passa a ocorrer. A dimensão da espiritualidade remete a um plano metafísico, conforme se encontra descrito em diversos autores:
“Tem-se por espiritualidade o conjunto de todas as emoções e convicções de natureza não material, com a suposição de que há mais no viver do que pode ser percebido ou plenamente compreendido, remetendo a questões como o significado e o sentido da vida, não se limitando a qualquer tipo específico de crença ou prática religiosa.” (12, p. 440-5).
“A espiritualidade é a dimensão que corresponde à abertura da consciência ao significado e a totalidade de vida, possibilitando uma recapitulação qualitativa de seu processo vital. Portanto envolve a busca pelo sentido ou significado para a existência e está articulada a uma necessidade mitificante, ao imaginário e ao simbólico” (9, p. 63-85).
“Toda pessoa é espiritual, enquanto dotada de espírito. A espiritualidade não implica necessariamente na fé em uma divindade específica. A palavra espírito não se refere especificamente à divindade, mas à capacidade de autoconsciência, de fazer uma reflexão sobre si mesmo. O ser humano é um ser intrinsecamente espiritual, pois demonstra esta capacidade de refletir e autotranscender-se.” (13, p. 15)
Ross admite três componentes na espiritualidade que se vinculam a circunstâncias e situações extremamente frequentes, quer para o paciente, quer para o profissional da saúde:
“A espiritualidade depende de três componentes: necessidade de encontrar significado, razão e preenchimento na vida; necessidade de esperança/ vontade para viver; necessidade de ter fé em si mesmo, nos outros e em Deus. A necessidade de significado é considerada uma condição essencial à vida e, quando um indivíduo se sente incapaz de encontrar um significado, sofre em função dos sentimentos de vazio e desespero.”(14, p. 446-55)
A respeito da condição de sentido da vida, referido pela maioria dos autores, como ponto fundamental no âmbito da espiritualidade, deve-se destacar a obra de Viktor Frankl, psiquiatra que desenvolveu um estudo decorrente de uma experiência humana própria, quando de seu período de permanência nos campos de concentração nazistas em Auschwitz. Assim analisava Frankl o sentido da vida conforme apresentado por Pessini e Barchifontaine. Segundo Frankl, o sentido da vida é um dom e seu sentido nunca desaparece. Está fundamentado na vontade do sentido, ou seja, no desejo de descobrir sentido na existência humana e na liberdade da vontade, que significa a liberdade para descobrir este sentido e escolher uma atitude diante do sofrimento. Para Frankl O sentido da vida se centra na criatividade, na experiência e na atitude. Além disso, o pensador Frankl aponta para três problemas existenciais inevitáveis: o sofrimento, a morte e a culpa. (15)
A tríade de Frankl,(sofrimento, morte e culpa) pode ser observada como que inserida na análise do trabalho de McCord em que se procurou avaliar se os pacientes gostariam ou não de serem abordados no aspecto da espiritualidade na dependência de determinadas situações que se encontrassem. Observou-se que quanto mais grave e próximo da morte, mais de 90% dos pacientes sentem uma necessidade de ser abordado na esfera da espiritualidade. Mesmo em situações não graves, como a visita inicial, 43% de todos os entrevistados acham importante a abordagem do assunto. Por outro lado é visível que as situações apresentadas envolvem comportamento violento, vítimas de abuso sexual, sofrimento crônico, que nos reportam obrigatoriamente a refletir nos aspectos éticos (bioéticos) que estão incluídos nestas ocorrências. (16, 17)
Esta realidade apresentada estimulou a iniciativa de se criar uma disciplina eletiva na Universidade Federal de São Paulo denominada “Espiritualidade e Medicina” no ano de 2007, com o objetivo de levar a uma reflexão que favoreça, ao término do curso, o estudante perceber a importância da Espiritualidade como fator de influência no acompanhamento do paciente no processo saúde-doença e sua participação como instrumento de humanização no atendimento. (18, 19, 20)
Inspirados pelo que propõe Catão, nesta pesquisa procuramos partir da experiência pessoal como o fundamento do conhecimento:
“Todo esclarecimento entre os humanos tem que partir da experiência humana, daquilo que vemos, ouvimos, sentimos, percebemos e desejamos. Partir da experiência é adotar o procedimento indutivo, tão velho quanto o próprio pensamento humano. Somos induzidos a construir o conhecimento a partir da experiência.” (21 , p.15-69)
Perspectivas Futuras
No curto intervalo de tempo até então apresentado, percebe-se que há um grande campo de pesquisa para o desenvolvimento de projetos na temática da Espiritualidade e Saúde. Desde a formação na graduação até a pós-graduação, envolvendo também grupos de reflexão permanente para o desenvolvimento de programas que visem a inserção da espiritualidade como elemento numa assistência mais humanizada na saúde, o horizonte que se apresenta é desafiador, contudo estimulante.
Procurar voltar as raízes da medicina, quando não se diferenciava no homem, um corpo e um espírito, mas percebia-se nesta unidade a manifestação do humano propriamente dito, é o desafio que se apresenta no século XXI. Em um novo contexto, onde é impossível, e não é desejável, afastar-se da visão molecular, bioquímica, e genética da constituição e fisiologia humana, é necessário reintroduzir a anima da espiritualidade. De natureza misteriosa, que esconde-se da visão dos microscópios, passa imperceptível as reações de procedimentos laboratoriais, não se detecta aos modernos aparelhos de ressonância, a espiritualidade permanece como uma manifestação humana por se conhecer melhor, para poder ser utilizada em favor do doente, e quem sabe dar uma resposta definitiva as questões angustiantes da existência humana.
Bibliografia
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