Relatos de participantes do ciclo Descobrindo o Humano com a ajuda do Diabo, discussões sobre o livro: O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov, na disciplina Laboratório de Humanidades.
Textos de Carla de Oliveira Carletti, Maria Tereza Piedade Rabelo e Maria Luiza do Val
“Não basta fazer coisas boas, é preciso fazê-las bem”
por Carla de Oliveira Carletti
“...se Deus não existe, então pergunto quem governa a vida do homem e toda a ordem geral na Terra?” (pg.,21). Essa foi uma de tantas as frases que me impactaram ao ler o livro de O Mestre e Margarida, escrito por Mikhail Bulgákov. Na verdade, o nome da disciplina “Descobrindo o Humano com a ajuda do Diabo” já havia provocado em mim “agulhinhas nas profundezas da alma...eram as agulhinhas do desassossego” (pg., 105) as quais eu não conseguia descrever em forma de palavras. Talvez, porque eu tive uma educação cristã, regada de principios religiosos e não acreditava que o Diabo (mesmo que na narrativa literária) pudesse trazer algo de bom para a humanidade. Pois bem, eu estava errada! E se você compartilha desse mesmo pensamento retrógrado , recomendo a leitura!
Apesar de eu ter meus paradigmas catequéticos e biblícos, minha mente sempre foi curiosa e busca estimular habilidades metacognitivas antes de tomar uma decisão e por isso, resolvi me aventurar a participar da disciplina e ler o livro proposto (afinal, tive ótimas referências do LabHum).
Eu nunca tinha lido um livro de origem russa, e as primeiras páginas foram me chamando a atenção pela riqueza com que o autor fazia a descrição dos personagens e lugares (o que me fez ir a Rússia sem precisar enfrentar muitas horas de voo, rsrs...). Embora eu tenha me privado desse cansaço físico (“ir a Rússica sem sair do conforto do meu quarto”), o autor causou em mim uma “explosão de neurastenia” (pg., 79), com tantos nomes, sobrenomes, apelidos e pseudônimos para um mesmo personagem (aliás, ainda não sei se Stiopa Likhodêiev e Stepan Bogdánovitch, são as mesmas pessoas, rsrs... PS:Por favor Sophia, me ajude! Rsrs...). Sophia é uma das colegas que participou conosco de nossas reuniões e que trouxe preciosas contribuições para as nossas histórias de leitura e de convivência, pois já havia feito a leitura do livro em outro momento e elencou o mesmo como um de seus preferidos. Assim como ela, os outros colegas do grupo também enriqueceram nossas reuniões, partilhando com todos suas percepções sobre o livro de Mikhail Bulgákov e fazendo alusões a outros livros literários, desde “O Alienista, de Machado de Assis”, até de “Dom Quixote de la Mancha, escrito por Miguel de Cervantes”.
A primeira parte do livro (capítulo 1 ao 18), é marcada por dois escritores falando sobre a não existência de Jesus e de um personagem (Woland, que descobrimos depois ser o Diabo) dizendo que Jesus existia, e que apesar de não precisar de nenhuma prova, ele poderia afirmar e assim o fez contando a história da morte de Ieshua e o drama (ou angústia/culpa?) de Pôncio Pilatos. Além disso, essa parte também ilustra um dos escritores que perde literalmente sua cabeça e o outro que vai parar numa clínica psiquiátrica por perseguir quem ele achava ser o culpado por essa tragédia. Ahhh, e um desses capítulos também narram o espetáculo de magia negra (que eu mais dei risada que fiquei com medo) e o surgimento do Mestre que me causou um turbilhão de frustrações e ao mesmo tempo compreensão, pois apesar de toda a sua sabedoria demonstrou ser alguém sensível, frágil e incurável (pg., 154) às críticas impostas pela comunidade dos literários.
Espanto, angústia, frustração, deboche, compaixão, raiva, indignação e corrupção foram sentimentos e temas abordados nessa parte do livro, em minha opinião. Assim como alguns colegas comentaram, eu também vejo que provavelmente o autor do livro utiliza o personagem do Diabo como uma crítica para a sociedade que é consumista, não só de dinheiro, mas também de valores não éticos e da falsa bondade. Pois é, o próprio Diabo fazendo o bem e sendo bom na visão literária, mostrando que “o principal erro consiste em menosprezar o significado dos olhos humanos (...) a língua pode ocultar a verdade, mas os olhos jamais”(pg.,172), ou seja, existe uma grande assimetria entre se dizer bom e fazer o bem.
A segunda parte do livro (capítulo 19 a 32), é marcada sem dúvida pelo papel encantador e corajoso que Margarida exerce! “Dentre os vícios humanos, o principal é a covardia” (pg.,307) e esse vício Margarida não fez uso, já que não escondia os seus defeitos e fez de tudo para vivenciar um amor, e até mesmo se transformar em bruxa (Você teria essa coragem?). Seu voo em sua vassoura representou sua liberdade, de ir atrás de seus sonhos e de sua felicidade, mesmo que talvez fosse passageira. Ao contrário do Mestre, Margarida “não deixava que o medo se apoderasse de cada célula de seu corpo” (pg., 154), tornando-a cada vez mais protagonista de um romance que talvez tivesse sido criado para que exercesse papel de coadjuvante. Ainda, essa parte do livro ilustra o grande baile de Satã, o encontro de Margarida com Woland, o fim do apartamento nº 50, as últimas aventuras de Korôviev e Behemoth e o destino final do Mestre e Margarida (que eu ainda estou confusa e não sei se toda a dramaturgia não passou de um sonho ou se ambos vivenciaram a “realidade” dos fatos descritos pelo autor rsrs... A sensação é de um quebra-cabeça que faltam peças!).
Dúvida, curiosidade, mistério, confusão, deboche, espanto, justiça, misericórdia, admiração, emoção e outra sensação que eu ainda não consigo descrever em palavras, foram sentimentos e temas reportados nesses capítulos finais, no meu ponto de vista. Um Diabo se desculpando por “seus trajes domésticos e apegado aos métodos da vovó ao queixar-se de uma dor no joelho” (pgs.,257,261 e 262), piedoso e fazendo o bem ao acolher um casal de apaixonados que “não mereciam a luz e sim o descanso” (pg., 360). Um Diabo sábio (talvez até mais que o próprio Mestre) e bondoso ao compartilhar seu pensamento: “o que seria do seu bem se o mal não existisse? (...) as sombras resultam dos objetos e das pessoas” (pg., 359), que me faz refletir que é a humanidade que pratica o mal, incentivada pelo reflexo de seus próprios desejos gananciosos e não por influência do Diabo, na perspectiva literária. Afinal, é mais fácil as pessoas dizerem “tudo é culpa do Diabo” do que assumir seus próprios erros.
Algo que me chamou a atenção é que o livro se iniciou com o Diabo dizendo que poderia afirmar a existência de Jesus, e que Pôncio Pilatos teve um papel de maior destaque na história, talvez porque o autor quisesse demonstrar que Pilatos carregava um sentimento de culpa) (o que não é citado na literatura bíblica), ou porque Mikhail Bulgákov compartilha do pensamento que costuma ser atribuído a São Tomás de Aquino e a outro santo e poeta de que “para aqueles que creem, nenhuma explicação é necessária; e para aqueles que não creem, nenhuma explicação é possível”, ou seja, qualquer argumento que o autor escarrasse na face dos leitores que não creem, não seria suficiente.
De uma forma em geral, o livro e a participação na disciplina do Laboratório de Humanidades, proporcionou a mim grandes momentos reflexivos, terapêuticos e de aprendizado pessoal e literário, já que muitas sugestões de livros lidos pelos participantes foram abordadas, enriquecendo ainda mais a minha lista de futuros livros que pretendo ler. Além disso, assim como Ivan Nikoláievitch Ponyriov (pg.,122) eu também tive meu momento de diálogo com a “velha e a nova” Carla, após ler O Mestre e Margarida. E se eu acredito que o Diabo também pode ser bom fora do contexto literário? Aí já é prosa para um novo texto e relato de experiência rsrs. No entanto, em um pensamento eu acredito: “não basta fazer coisas boas, é preciso fazê-las bem” (Santo Agostinho).
O voo da Margarida
por Maria Tereza Piedade Rabelo
Gostaria de agradecer à Profa. Nádia e ao Prof. Licurgo pelo clima leve e descontraído dos encontros. Acredito que um clássico da literatura russa pode com frequência causar inibição, mas, certamente, não foi o caso. Obrigada por facilitarem minha leitura e participação nos encontros.
Gostei muito do livro. A princípio, encontrei um humor um pouco nonsense, o qual me fez dar boas risadas. No entanto, ao entrar na parte 2, o humor foi se distanciando, e outros sentimentos surgiram. Foi na cena do Teatro de Variedades que o primeiro insight a respeito do humano com a ajuda do diabo saltou das páginas. No início dessa cena, um breve sentimento de justiça tomou conta de mim à medida que o diabo começou a revelação dos segredos. No entanto, esse sentimento de justiça rapidamente se tornou um incômodo grande. Fiquei angustiada.
Fui com essa angústia para o encontro em que discutiríamos a parte 2 e, ao ouvir colegas e professores comentando sobre suas leituras, consegui, a partir dessas falas, nomear, com minhas palavras, a minha angústia. Na cena, o diabo, ao seguir desvelando o lado obscuro do humano que tanto velamos, ultrapassou um limite. Quem é que nunca se posicionou assim? Como foi falado no grupo, essa posição diabólica nos remeteu ao sincericídio, o famoso colocar o dedo na ferida. Posição esta que se pode adotar com os outros, mas também com nós mesmos ao revelarmos nossa intimidade sem limites ao público.
Outro episódio que considero alto da minha leitura foi o voo da Margarida. Escutei nesse ponto uma duplicidade de sentido muito interessante. Em um primeiro momento, o pacto que ela faz com o diabo e todo o desenrolar das cenas podem parecer um rompimento com a ordem e a moral. “Ela é louca? Deixar um marido bom e uma casa bonita só pode ser louca.” No entanto, em um segundo momento, ao escutar as discussões, consegui ir além dessa primeira leitura e viajei no voo da Margarida, pensando mais em uma libertação e tomada de posição em relação a seu desejo. Achei, também, muito interessante a questão da mulher como bruxa aparecer, assim como a submissão a um mestre, posições que denunciam algo do feminino. De novo, aqui, quem nunca se viu submetida ao desejo e saber de um mestre?
Considero essas duas passagens as mais arrebatadoras para mim, mas pude construir, juntamente com o grupo, a leitura de que a covardia de Pilatos está em nós todos os dias à medida que assistimos a pessoas sofrerem injustiças o tempo todo. As guerras, a miséria, entre outros acontecimentos, são exemplos de covardia estilo Pilatos. Quem nunca abriu mão de dar sua opinião a respeito da crucificação de alguém feito por um grupo porque pegaria mal?
Para mim, essa obra, com muito humor e estilo, me fez sacudir julgamentos internos, a famosa hipocrisia que habita em nossos corações. Achei incrível a capacidade de o autor abordar um tema tão complexo dessa forma, mais ainda se pensarmos em tudo que acontecia na Rússia no momento da escrita. Com certeza, essa leitura e discussão causaram em mim importantes reflexões e pensamentos. Obrigada Labhum!
Apreciando a viagem
por Maria Luiza do Val
Tive ótimas referências do curso e desde a inscrição estava com uma expectativa enorme.
A bibliotecária onde fiz o empréstimo do livro o Mestre e Margarida lançou um balde de água fria falando que seria denso, um livro russo e longo.
Iniciei a leitura e com ela a preocupação com o fato de não estar gostando do livro. Na realidade foram muitos dias de luta contra a impressão do livro ser tão descritivo, além de um pouco confuso e cansativo em minha opinião.
A dualidade dos personagens e a forma bastante descritiva me incomodaram. Abordar coisas para mim desconfortáveis como o diabo, questionar a imagem de Jesus, estampar o bem e o mal, a vingança e a doçura expressos num mesmo personagem, despertaram em mim vários sentimentos.
Posso contar que foi difícil ler, me perdia, voltava e não avançava, até que o curso começou e achei que ia desistir.
Comecei a gostar da Margarida, a figura que me fez sentir mais acolhida no livro, ora boa, ora má, o feminino e o masculino e outros pontos tão sutis que foram exemplarmente levantados nas discussões, me fizeram ceder e ver o outro lado do livro.
De repente veio com o curso uma nova proposta, a ideia da releitura, achei uma experiência incrível, e daí me joguei, relaxei e me fez feliz, e feliz por estar no grupo. Reli a partir de então mais em sintonia, apreciando a viagem e daí em diante não parou a vontade de reler e de chegar a terça-feira para ouvir os comentários.
Do ponto de vista estrutural do curso, o ponto forte é a revisão da aula anterior, faz um link e põe o pensamento na rota.
O Labhum foi a força motriz para a jornada, acredito que como para muitos de continuar a ler, e foi muitas vezes a minha “tecla sap’’, para entender coisas que eu não havia sequer visto, ou vê-las sob outro ângulo.
Daí a cada vez uma interpretação me tocava mais, como foi a referência da covardia versus a coragem. A ideia de que “precisamos de coragem para enfrentar a sociedade” foi inesquecível também.
Atualmente não sou uma leitora muito frequente, já que o trabalho me engole com tantos artigos científicos, mas sempre gostei do hábito. Sempre leio, mas leio mais durante o período de férias, algo que me indiquem e sem compromisso. Aquele perfil de se não gosto, paro. Então ter que ler o livro até o fim, foi também uma experiência renovadora, com um significado do tipo “olhe um pouco melhor para isso”, e assim abandonei a postura de quem minimiza e define arduamente o bom e o ruim, o bem e o mal.
Ler para mim sempre foi terapêutico, é deixar o pensamento ir e se confortar nesse caminho. Fazer este caminho de uma forma diferente foi sensacional. Compartilhar isso com pessoas interessantes foi incrível.
Inicialmente este confronto intenso do livro não me trouxe o conforto habitual da leitura, mas o curso me trouxe várias outras vivências e principalmente a convicção de querer participar de outros grupos do Labhum.
Parabenizo em especial o Licurgo, em relação a tudo que ele levantou durante o curso e de forma relevante a fluidez da sua posição de guia neste primeiro LabHum. E ampliando a citação invertida que ele fez no final do curso, acho mesmo que precisamos não só como pós-graduandos mas como pessoas, estar abertos a estas percepções, com criatividade e curiosidade. Ter olhos ‘’de ouvir’’ e ouvidos ‘’de ver’’, como a tradução literal de estar aberto e sem limites para viver as experiências que a leitura de um livro pode trazer.
Adorei, obrigada!
Ilustrações:
The Master and Margarita: 50th-Anniversary Edition (Penguin Classics Deluxe Edition)