Sophia, aquarela de Iêda Aleluia, 2022
Relatos do ciclo Descobrindo o Humano com a ajuda do Diabo, discussões sobre o livro: O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov.
Textos de Sophia C. G. da Costa, Raquel Simakawa e Carolina Ferreira Santos
“O ser humano é mortal, mas isso ainda seria meia desgraça. O ruim é que às vezes ele é mortal de repente, eis a magica!”
Por Sophia C. G. da Costa
O primeiro contato que tive com esse livro veio de um desconhecido. Estranhamente, uma pessoa que havia conversado comigo pouquíssimas vezes e com um grau ínfimo de intimidade, um dia me disse “comprei esse livro para você. Tenho certeza de que vai gostar.”.
Ao terminar o livro cheguei a refletir, será que eu sou assim tão obvia? Como é possível uma pessoa tão distante saber que esse livro me impressionaria tanto?
Não importa... minha obviedade é completamente irrelevante nesse contexto.
Na primeira vez que o li, no início, ainda que não soubesse da temática (não leio orelhas), já percebi que ali havia um ser sobrenatural, astuto, sarcástico e irônico, que nada mais tinha como intenção, a não ser fazer com que o ser humano tropeçasse em seus próprios cadarços desamarrados. Ao longo da leitura, me pareceu o Diabo a melhor denominação para tal personagem. Por quê? Porque a meu ver, o diabo nunca foi mau. Ele é apenas um espelho torto das nossas próprias maldades.
Acompanhar o diabo e sua trupe em seu passeio por Moscou me fez rir da desgraça que é a condição humana. Condição de sermos egoístas e gananciosos a ponto de aceitarmos o absurdo, desde que ele nos favoreça. Ao mesmo tempo, ver que temos a capacidade de reflexão. Conseguimos olhar para nós mesmos e sermos capazes de reconhecermos e mudarmos nossas falhas. Querer olhar para um espelho faz com que este reflita a imagem que nos pertence. Não querer vê-la, faz com que o espelho torto nos obrigue a encará-la da pior forma possível.
Assim o livro me levou, como um dos membros da trupe de Wolner. Confesso que até imaginei como seria minha personagem, se dentro do livro eu estivesse.
Refleti muito a respeito da atitude do ser humano frente à visão dicotômica do bem e do mal. Sobre ver que nem sempre o bem passivo é bom. Que ficar “em cima do muro”, é escolher dar-se ao Diabo.
A presença do símbolo feminino trazido por Margarida, despertou em mim a reflexão sobre o que a doce, dolorida e melancólica inocência feminina tem de valorosa quando na visão do Diabo. Por que é que aquele que veio para uma inspeção moral se comoveu com essa mulher? Convenhamos, ela certamente não se encaixa na clássica moralidade estabelecida pelo Homem. Então por que é tratada com tanta delicadeza por ele? Bom... me parece que o Diabo, com a peculiaridade que lhe cabe, sentiu-se tocado pela honestidade e devoção de Margarida à vida; ao Mestre; ao amor. Se o que ele procurava nessa visita era encontrar um humano que se percebesse em sua pequeneza e ali vivesse de acordo com essa consciência, ele a encontrou.
No fim das contas, o livro me trouxe a mais crua e óbvia (não tão óbvia quanto eu, aparentemente) visão sobre as grandes temáticas conflituosas da vida humana: a mentira, a ambição, a lealdade, o amor, a loucura, a dúvida, a vida e a morte; confesso que me deliciei passeando por todas elas.
Se o objetivo era “entender o humano com a ajuda do Diabo” ele foi alcançado.
P.S.: Meu próximo gato preto já tem nome.
O silêncio. O que se pode transmitir com o silêncio?
Por Raquel Simakawa
Aviso: as palavras abaixo poderão trazer sentimentos de frustração e questionamentos sobre a vida e seus desafios. Leia com cuidado.
(Des)conexão. A experiência no LabHum, iniciada ali no momento da inscrição, permeada de expectativas, mergulhos e reencontro com a leitura - há tempos desejado e há poucos meses conquistado -, se mostrou ao longos das semanas um desafio. Uma provação para me manter conectada às vontades iniciais quando a vida, essa que escorre por nossos dedos e nos convoca a estar presentes, chama - nem sempre quando e como queremos. E, como todo processo artístico e sensível que nos permitimos experimentar, evidenciou aspectos mal resolvidos do meu ser-estar no mundo.
O que fazemos com o que a vida faz conosco? O quanto de nossas decisões e ações no dia a dia comunica nossas vontades depois de um processo interno sincero de reflexão?
Li todo O mestre e Margarida antes de começar os encontros. Diversas sensações despertadas: curiosidade pelo absurdo narrado, excitação pela figura do diabo e sua atípica representação com seu séquito, algum tédio quando em certas partes do livro mais lentas, atração pela provocação que o diabo exercia nas pessoas “comuns”, graça e riso pelas consequências e reações das pessoas, admiração pelo poder descritivo que levava a mergulhar nas cenas - Ivan correndo desperado na cidade e na sua loucura; show do Woland no Variedades e suas aparentes “perversidades" (provações para o nosso ser?); Pôncio Pilatos decidindo sobre a vida de "alguém" quando não devidamente preparado e se arrependendo depois (quem nunca?); voo da Margarida com a descoberta da liberdade e de tudo que se pode ser; o baile… que baile!; a crucificação, a indiferença e o sofrimento ao redor -; incômodos (exagerados?) sobre a representação da mulher no livro; vazio ao terminar a última página. “Acabou?”, pensei.
O último capítulo demorou para ser lido - deixei o livro parado quase 1 semana - afazeres da vida? ou apego? Sei que o terminei com a sensação de que queria mais para essa leitura, para esse final. Procurei saber mais do livro, vi que era muito conhecido e querido na Rússia, inclusive com uma placa no Parque do Patriarca onde o livro começa, a la Harry Potter em Londres.
Nesse cenário de muita coisa ter me atraído no livro, mas com um algum incômodo ao sentir que não consegui capturar sua essência, os encontros começaram. Expectativa alta, preciso ouvir as outras pessoas.
Yuri, com sua calma e sensibilidade (muita literatura fez isso com ele? ou ele já foi assim para a literatura? via de mão dupla, imagino), apresenta o LabHum e sua história nele. Fazemos nossas apresentações: companheiras (e alguns companheiros) de viagem nas semanas seguintes. Depois, mergulhar um pouco na experiência do outro com o livro, um ampliar de visão de mundo, um exercício de simpatia, escuta e empatia. Perceber o que do outro mexe com a gente, o que não mexe e seguir atenta. Compartilhar o que se passa dentro (e que seja possível traduzir em palavras, assim, online). Início de uma intimidade.
Primeira frustração, a não releitura conforme os capítulos seriam discutidos. Nada demais, muita coisa nessa vida, segui com o que lembrava.
Segunda frustração, questões de saúde e trabalho não me permitiram participar ativamente do primeiro encontro para discutir o livro.
Anotações soltas de logo após o primeiro encontro - percepções de outros, mescladas com as minhas próprias, a maioria provocada após a escuta. Bem passivo e mal ativo. Disputa de narrativas, as várias verdades. Para além de se descobrir a verdade, entender que há várias verdades. Tudo, em última instância talvez possa ser justificado, mas o quanto e para quem ela é aceitável. Perder a cabeça literal e figurativamente. Patologizar. Relativização das situações/ ações e seus limites, quão flexíveis e toleráveis ou enrijecidas. Angústia de se perder de si, realidade construída socialmente, compartilhar e fazer pactos - sofrimento de minorias. Difícil se bancar frente a uma sociedade, família, pares que não compartilham a mesma visão de mundo. Autorização do outro para eu expressar o que eu julgo (o que é julgado de) “pior” em mim e relativizar -> construção/cobrança social sobre o que é o certo e errado -> moral -> e não um processo interno de entendimento de valores e bases sólidas -> diabo provoca a pessoa a ser o que se é, sem censura, quando recebido certos estímulos -> diabo como espelho e como prova para a moral/ética. Como o absurdo é gostoso, faz graça na mente.
Terceira frustração, novamente por questões de trabalho, não pude estar presente no encontro seguinte. Seria a desconexão um caminho sem volta?
Para minha surpresa, quando volto no terceiro encontro de discussão do livro, o grupo me convoca à conexão: me emociono ao perceber a escuta, as falas, o cuidado, o envolvimento, as interpretações sobre o livro e o quanto tudo ainda mexia aqui dentro.
Quarta e última frustração: percebi que a desconexão ocorrida até ali não me possibilitou voltar inteira. Ouvia tudo atenta, várias coisas me atravessavam, outras tantas eram geradas e poderiam ser compartilhadas, mas já não sentia ter direito à voz naquela egrégora formada. Nada objetivo ou que fizesse sentido, apenas a sensação de estranhamento, de estar fora, insegurança.
O silêncio. O que se pode transmitir com o silêncio? Muita coisa, várias delas com a menor relação com o que de fato se passa dentro. Como sair dessa passividade e se mostrar? Como romper com a inação e se fazer ver, ouvir, sentir? O outro ali, tendo seu papel - frequentemente na imaginação apenas - de juiz, do saber, da verdade; quando eu, o que sei sobre mim mesmo?
Choro quando desligo a chamada do último encontro. Aquele choro de soluço, profundo, sem muita clareza dos porquês - uma parte pela troca que pude presenciar ali, com certeza. Sobre mim, me dando conta que a última possibilidade de me expressar acabou? Querendo ter uma outra chance para fazer diferente, mas sem saber o que de fato mudaria: o contexto me fez agir assim ou essa sou eu mesma? - e outras tantas reflexões pessoais que conversam com o que aconteceu na minha vivência com o LabHum, metáfora da vida.
Quando Pôncio Pilatos partiu
Por Carolina Ferreira Santos
A minha experiência com o livro “O mestre e a Margarida” foi de muita reflexão. O início da leitura foi árduo, as páginas que nem eram tão longas pareciam imensas, e a história parecia não engrenar. Iniciei minha leitura antes que os encontros do grupo tivessem começado, mas não conseguia avançar nas páginas, para mim o texto era penoso. Pensei até em desistir porque eu não tinha tempo para ler, meu marido foi quem me incentivou a continuar, e sugeriu que pelo menos eu me desse a chance de conhecer o grupo.
Participei do primeiro encontro e me encantei com a dinâmica do Laboratório Humanidades (LabHum). Naquele dia assumi o compromisso de ler os capítulos de acordo com itinerário do grupo. E assim eu fiz! Li dentro do carro, no horário de almoço, no metrô, antes de iniciar os atendimentos no local onde trabalho, entre as sessões dos pacientes, e antes de dormir. Li para meu marido, e até discuti os capítulos do livro com ele. Aproveitei todas as oportunidades, e percebi que se eu não tinha lido outros livros de literatura neste ano, era porque eu ainda não me respeitava o suficiente, não priorizava as coisas de que eu gostava, não era gentil e humana comigo. Mas porque eu agia dessa maneira? Eu que sempre escutava a história de todos não tinha tempo para ouvir a mim mesma?
O livro trouxe a minha memória os momentos da minha vida em que eu tinha tempo. A época em que eu podia engrenar por várias horas nas páginas de um livro que não tratava de assuntos técnicos, ou dos últimos resultados científicos de um artigo, me remeteu a momentos que eram dedicados a imaginação. Mas afinal, quando foi que eu me perdi? Será que foi com o acúmulo de trabalho? Ou com horas de dedicação ao mestrado? Ou ainda, será que foi cuidando de minha filha, ou da minha família? Eu não conseguia encontrar quando tudo havia começado.
Segui com os encontros. Os apontamentos levantados pelo grupo foram extremamente importantes nesse processo de busca interior. As pessoas viam coisas que eu não tinha enxergado nas cenas ou nos personagens durante a minha leitura, e isso me chamava a atenção e me fazia compreender a história por meio de diferentes perspectivas. Os dados históricos, e as falas dos colegas enriqueceram minha experiência com o livro. Eu fiz questão de acompanhar cada fala, cada texto no chat, relatos de outros livros, músicas etc., tudo aconteceu num ambiente muito acolhedor.
O trecho do livro que mais mexeu comigo foi quando o mestre encontrou com Pôncio Pilatos e o libertou deixando-o livre do purgatório. De certa forma também libertei o Pilatos do romance que é a minha vida. Em paralelo ao livro, na mesma semana em que li esse trecho, me libertei de uma situação que me aprisionava. Quando a deixei ir eu senti que a minha alma estava mais leve. Alguns até pensaram que eu havia me tornado bruxa, como a nossa Margarida, outros tentando invalidar o meu esforço em fazer o que fiz desdenharam de minha coragem tentando reduzi-la. Deste modo, eu pude entender como e de que forma me perdi. Aconteceu quando eu me afastei da minha sensibilidade, da minha arte, do tempo delatado ao contemplar um quadro, ou quando deixei de ouvir as minhas músicas preferidas enquanto conversava com as plantas na sala de jantar, e até mesmo quando deixei de tocar meu instrumento favorito, a flauta, ou de fazer duetos de voz e violão com meu marido em nossa casa.
E mesmo depois de ter finalizado a leitura, o livro ainda estava comigo, em pensamento. Ao mesmo tempo que me sentia feliz por ter acompanhado o itinerário do grupo, eu ficava triste porque a história havia acabado, era uma mistura de satisfação acrescida de uma dose de melancolia. Foi aí que me lembrei de como iniciamos o nosso ciclo, foi falando sobre o tempo, sobre como esse tempo da sensibilidade, da delicadeza, da arte e claro da leitura é roubado, não foi à toa que Daniel Pennac foi citado. Enfim, para curar a minha inquietude e angústia pelo término da leitura só me resta uma coisa, retomar tudo o que perdi, me debruçar sobre um novo livro, cantar uma nova canção, ou retomar aquela música que há muito tempo eu não tocava na flauta. Assim, eu tenho a certeza de que não irei me perder de novo.