Podemos nos tornar mais humanos aprendendo com um monstro? Será possível aprender a encontrar a paz com um homem atormentado pela sua própria criação? Nestes dois textos a seguir acompanhamos um pouco da experiência incrível do ciclo sobre Frankenstein, de Mary Shelley, com estudantes de graduação com estudantes da área da saúde.
Afinal, quem é o monstro?
Por Andrea Giovanna Gomes Bernardes (enfermagem, 2º ano)
Por meio da leitura de Frankenstein, de Mary Shelley, pôde-se fazer várias relações. É impressionante como um romance de 1818 pode tocar temas tão atuais presentes ainda no século XXI, não à toa que é um clássico da literatura. Já no princípio da leitura deparo-me com a ambição monstruosa de Victor Frankenstein pela invenção criatura, até mesmo se isola da sociedade e não compartilha com ninguém, nem com seu melhor amigo, o projeto. Tal evidência demonstra a ganância, um substantivo muito presente no atual mundo capitalista, a ponto de nos isolarmos para alcançar um objetivo, um sonho. Temos que estar atentos, pois nossos sonhos podem nos fazer voar, mas assim como Victor, eles também podem nos colocar em prisões sociais, emocionais e até física.
Logo em seguida, temos a “fuga”de Victor ao perceber que sua ideia se tornou real e não sabe lidar com a criatura. Certamente, não planejou os os próximos passos após a criação e a aparência física não colaborou para que permanecesse. Para a criatura ficava o questionamento, como diz nesse trecho: “Eu era só. Ocorriam-me as súplicas de Adão e seu Criador. O meu, porém, onde estava?”. Assim, dará os primeiros passos na Terra de modo solitário e curioso, pois em nenhum local encontrava seres semelhantes e não sabia bem como agir. A partir de então, a criatura passa a fazer perguntas questionando sua existência, do tipo “Para que estou aqui? Quem me criou?”. E, assim como nós, procura entender seu propósito no mundo. Passa grande parte do tempo observando uma família da janela de um casebre em que fica morando, é interessante notar que a família pode ser interpretada como amorosa e culta, pois por meio dela, consegue aprender o idioma, compreende o que são os sentimentos como amor, tristeza e alegria. Nesse momento, passo a imaginar como a criatura se comportaria caso encontrasse outro tipo de família, uma família mais violenta. Fato é, que passamos a ser aquilo que observamos e temos como exemplo. Embora o filme Frankenstein seja a respeito de um monstro irracional e assassino, o livro mostra que a história original é bem diferente. Ainda que a criatura tenha uma aparência estranha, demonstra sempre sensibilidade, carinho e generosidade com os próximos, criando até um sentimento de afeto para com a família observada.
Outro fato interessante, é o personagem De Lacey, um senhor cego, que será o primeiro humano a escutar a criatura sem demonstrar espanto e com respeito. Nessa "cena", a criatura clama por atenção e amizade, intenções essas que são desfeitas mediante a chegada dos outros moradores na casa do idoso, pois se assustam e o expulsam, o medo é tanto que irão mudar de casa. Independente de suas pretensões, independente de parecer bondoso e educado e até certo ponto, muito sensível, sua aparência é sobrepujante ante as interpretações que fazem. Desse modo, é quase impossível adquirir alguma ajuda. E novamente batemos em “teclas” atuais, momento em que as aparências importam muito, a ponto daquilo que apresentamos, valer muito mais do que quem somos. Nos tornamos egoístas e ambiciosos até em relação ao caráter do indivíduo, uma vez que se nota o benefício que aquela amizade trará. E como em muitos de nós, a hostilidade humana vai gerando sentimentos ruins, como raiva e vingança, ambos aspectos que podem - não somente eles, mas em grande parte - , talvez, explicar assassinatos em massa que ocorrem dentro de escolas por ex-alunos.
O ser humano precisará sempre pertencer a um lugar, a um grupo, pois a falta de um "espaço comum” pode gerar a desconstrução do eu, a desumanização, todos nós precisamos de pessoas para nos identificarmos. O desprezo pode gerar sentimentos muito perigosos. Assim como com a criatura que vai se desfazendo do afeto e carinho que tinha, e passa a demonstrar um lado mais obscuro, como no trecho: “Com o inferno da revolta roendo em meu peito, sem ter a quem confiar minha mágoa infinita, tinha ímpetos, qual a imagem do próprio senhor do mal, arrancar as árvores, espalhar a desgraça e a destruição em torno de mim e depois contemplar o espetáculo da ruína”. Nesse ponto, começo a perceber que o livro parece permear constantemente a humanização de criaturas e a desumanização de pessoas. Chega-se a um ponto em que me pergunto: “Quem será que é o monstro de fato, a criatura, o Victor ou eu (leitor)?”
Além disso, por meio das discussões em aula, reparo a existência do que parece ser um ciclo constante em que as invenções humanas precisam de outras criações para “salvar” a inovação anterior. Shelley mostra como a ambição humana pode ser perigosa, muito antes do século XX, período em que o mundo teve que enfrentar os desafios e as catástrofes geradas pelo uso da bomba atômica, uma criação cheia de adventos científicos, mas que destruiu milhares de vidas e cidades, precisando mais tarde da elaboração de projetos de reconstrução, tratados de não-ataque, estruturas fortes para guardá-las, tratamento para aqueles que tiveram contato com a radiação, entre outras. A autora foi realmente muito sábia, pois de um modo indireto trouxe questões que ainda são discutidas, fazendo-nos refletir: "Será que em alguns pontos a humanidade está evoluindo, ou apenas revivendo questões passadas?”. Fato é, que precisamos nos responsabilizar por nossos feitos e consertá-los, caso seja necessário, pois penso que se Victor tivesse assumido seu erro e não tivesse deixado a criatura sozinha, talvez muitas coisas ruins poderiam ter sido evitadas e ainda, poderia ter “vencido” a mortalidade humana.
Duas Listas Para a Vida: Aprendendo com Frankenstein
Por Gabrielle Alves da Silva (fonoaudiologia, 2º ano)
O que ficou para minha vida, o que me lembrarei quando resgatar em minha memória a leitura de Frankenstein? Pensei em várias maneiras de suscitar os aprendizados que obtive, e a que me pareceu mais inteligente, visto a minha memória muito obtusa, foi uma lista. Ou melhor, duas.
3 maneiras de encontrar paz quando se está angustiado, segundo o Dr. Victor Frankenstein
1. Contemplar profundamente a natureza
"Os cumes gelados ofereciam aspectos variados, refulgindo à luz do sol ou sombreados pelas densas cúpulas de nuvens. Obedecendo a um impulso do meu coração, até há pouco triste e agora possuído de intensa alegria, bradei para o vazio: — Ó espíritos errantes, que acaso por aqui andais vagando e em vosso leito não encontrais repouso, permiti-me esta pouca felicidade, ou levai-me convosco, por mão amiga, para além das alegrias da vida!”
2. Dormir, pois o sono traz o esquecimento
“Coloquei a cabeça no travesseiro e bendisse o sono que chegava. Senti ser envolvido por ele e agradeci-lhe pelo esquecimento que me proporcionava.”
3. Continuar sua caminhada mesmo quando está chovendo
"Que me importavam a chuva e a tormenta? Decidi galgar o topo do Montanvert e vascular os segredos da gigantesca geleira, sempre a deslocar-se"
4 maneiras de ser mais humano – as quais aprendi com a Criatura
1. Entristecer-se com a tristeza do outro. Alegrar-se com sua alegria.
“As gentis e belas figuras dos donos da casa levaram-me a gostar deles imensamente. Quando estavam tristes, sentia-me deprimido. Quando estavam contentes, eu era solidário com sua alegria.”
2. Não desprezar as pessoas tão facilmente (Quem você despreza, pode ser quem mais te admira)
“O que mais me impressionou foram as maneiras gentis daquela gente, e eu ansiava por desfrutar de sua companhia, mas não me atrevia a tanto. Estava bem viva a lembrança do tratamento que sofrerá na noite anterior, de parte dos aldeões enfurecidos”
3. Praticar a bondade pode comover o coração de quem não está acostumada a vê-la (e, portanto, não está acostumado a praticá-la)
" Suponho que às vezes passavam fome, especialmente os dois jovens, que não deixavam de alimentar o velho quando nada tinham para si mesmos. Essa
demonstração de bondade comoveu-me a fundo. Eu habituara-me a furtar, durante a noite, uma parte de suas escassas provisões, para meu sustento, mas quando verifiquei que esse procedimento causava dano àquelas pessoas, deixei de fazê-lo e passei a satisfazer-me com frutas frescas, nozes e raízes, que ia colher em um bosque próximo.”
4. A alegria pode nos tornar mais belos – e mais humanos
"Félix, ao vê-la, foi tomado de arrebatada alegria, desaparecendo-lhe instantaneamente todos os traços de tristeza. Seus olhos cintilavam, as faces se afoguearam e, naquele momento, achei-o tão belo quanto a forasteira.”
E, além do que consta nessa lista, de fato inspirei-me ao ver que Mary Shelley, uma menina mais jovem do que eu, foi capaz de escrever um livro tão inteligente e profundo, cheio de camadas a serem investigadas. Com certeza, tentarei voltar a escrever com certa frequência, inspirando-me nela e em outros clássicos. O Laboratório de Humanidades foi de fato muito positivo para mim, uma aluna da área da saúde que já sonhou um dia em ser escritora, e que estava há um tempo afastada de sua paixão pela literatura.
(Ilustração: Yuri Bittar)