Escola Paulista de Medicina
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Encontros e despertares, por Fernanda Aimée Nobre

Leitura"... eu nunca havia pensado na leitura como um recurso de humanização. Pelo menos, não com esse nome, não nessa relação tão direta."

Eu sempre tive a leitura como uma das minhas atividades de lazer preferidas. De alguma forma, não sei se tão consciente, acho que desde muito nova – talvez desde criança -, eu entendo a leitura como uma forma de sair um pouco do meio desse turbilhão do mundo ao nosso redor – que incomoda. E mesmo quando a leitura me desassossega, o resultado final é alguma forma de calma e equilíbrio interior.

De alguns anos para cá, entretanto, é que comecei a ter mais compreensão do papel tão relevante da leitura no entendimento do mundo, das pessoas e de mim mesma. E, a partir daí, ainda que continue achando uma atividade de lazer, talvez pelo prazer associado a ela, tenho a sentido como uma prática necessária. Acho que eu posso dizer que, em tempos tão loucos, a leitura é indispensável para eu manter a minha sanidade mental. Junto a essa percepção coincidiu, também, o fato de eu ter começado a ler mais dos livros ditos clássicos, embora não somente eles.

Eu gosto muito de ter momentos solitários. Eu moro sozinha, gosto de passar dias inteiros andando por regiões da cidade só, entre outras coisas. E a leitura traz muito disso, de ser mais um momento silencioso e sozinho. Mas, por muitas vezes, a leitura desperta tantos pensamentos, tantas dúvidas, tantos incômodos que eu quero compartilhar essas impressões com alguém e debater o que foi lido. Nesse sentido, eu considero que tenho uma grande sorte na vida de ter alguns amigos também “leitores” – e que lêem os livros que eu sugiro e me trazem muitas sugestões de leituras. Isso certamente é um privilégio e, ao longo do tempo, me trouxe a ideia de que ler não é somente uma atividade solitária, mas, ao contrário, é mais rica quando dividida.

Formei com alguns amigos, há pouco mais de um ano, um clube de leitura. É um encontro totalmente despretensioso, sem regras e sem formatos. Uma vez por mês lemos um livro ou alguns contos e discutimos. Como somos amigos e leigos em literatura, falamos mais dos nossos sentimentos e pensamentos despertados, o que nos faz muito bem, ao menos a mim. Então, diante disso, passei a procurar, de forma mais curiosa do que comprometida, por locais que oferecessem esse tipo de atividade de um modo mais organizado e consistente.

Foi nesse meio tempo que um amigo, também como eu, estudante de doutorado na medicina da Unifesp, me contou sobre a existência do LabHum. Ele havia feito o ciclo sobre Cem anos de solidão e gostado muito. Qual não foi a minha surpresa em descobrir a existência desse projeto “bem aqui na Escola”, uma vez que estou na universidade desde o ano 2000. Fiquei pensando no tanto de coisas legais que possivelmente nos interessam e acontecem ao nosso redor e desconhecemos. Talvez eu precise estar mais atenta.

Contei, então, sobre o LabHum para uma grande amiga – que é, também, minha grande amiga leitora. Foi quase uma estratégia, pois eu sabia que ela, muito mais organizada do que eu, saberia todos os detalhes de matrícula, datas etc. E, dito e feito, logo que a inscrição abriu, ela, que estava monitorando o site do projeto, me avisou e nos matriculou!

Apesar de tudo que eu descrevi acima, eu nunca havia pensado na leitura como um recurso de humanização. Pelo menos, não com esse nome, não nessa relação tão direta. O impacto da leitura em mim, como uma terapia, já era claro há algum tempo. Mas o laboratório, especialmente, ao longo de todos os encontros de discussão conjunta, realmente me trouxe essa amplidão do efeito da literatura como humanizador. A cada aula, algo foi sendo acrescentado no meu pensamento, na minha forma de olhar o mundo e as pessoas. Eu realmente acho que aprendi um tanto no sentido de entender um pouquinho mais do ser humano, de entender o modo como eu percebo a mim e aos outros e sobre as minhas reações e as das outras pessoas a diferentes situações. Não sei bem pontuar fatos que levaram a isso de forma objetiva, mas refletindo agora ao final, eu consigo perceber uma diferença até clara. E espero que isso fique comigo.

O livro escolhido por si só já me trouxe muito. Eu já o havia lido em 2017 – na ocasião, eu não só tinha me sentido feliz por ter lido o primeiro Dostoiévski e entendido, na medida do meu possível, quanto gostado muito e tirado vários questionamentos e pensamentos para mim. Mas essa segunda leitura foi bem diferente. Eu fui lendo cada parte ao longo do desenrolar do curso e fui percebendo o tanto mais que havia por ali, especialmente diante das falas dos demais colegas. Cada aula, enriquecia a minha leitura da próxima parte, como se eu tivesse atingido um nível um pouquinho maior de compreensão e de capacidade de refletir sobre a história. Ouvindo, eu percebia pontos que meu pensamento não teria alcançado sozinho e isso me deu um entusiasmo ainda maior.

Por outro lado, debater os assuntos do livro, tão fortes e profundos, também me deixava com a cabeça tão cheia, como se as aulas revirassem um tanto de coisas em mim. Geralmente, na maioria das sextas-feiras, eu não queria mais continuar a leitura no mesmo dia, apenas ficava revendo minhas anotações e repensando pontos que tinham mexido comigo. Em algumas ocasiões, as aulas me levavam a reflexões ao longo do dia que saíam do âmbito da história e atingiam questionamentos próprios meus ou de coisas da minha vida. Normalmente, só no dia seguinte é que eu conseguia me dedicar novamente a prosseguir a leitura.

Outro ponto que me trouxe muito incômodo no começo foi a minha simpatia por Raskolnikov – eu não tinha sequer questionado isso a mim na primeira leitura. Especialmente nas primeiras duas a três aulas, isso me desconfortou um tanto. Os debates na aula faziam eu me sentir “errada”, nesse início, e eu pensei muito por que motivo eu sentia uma espécie de dó e de certa afeição pelo personagem. Mas, ao longo das discussões, os próprios colegas em suas interpretações e associações foram me ajudando nessa reflexão toda entre sentimento despertado e julgamentos feitos.

Falando em julgamento, posso dizer que o ponto levantado pelo professor em relação à diferença entre julgar e condenar foi algo que guardei para a vida, entre muitas outras coisas, nesse curso.

Por fim, toda a reflexão que o livro traz sobre possibilidade de redenção ou de se redimir por você mesmo e sobre a importância do amor e do afeto nesse contexto e na vida, foi mais um ponto que mexe muito e que muito faz pensar. Eu achei o livro, quando fechamos a última página, de uma beleza tão grande e, mais que isso, de uma importância tão grande para o nosso mundo atual. Eu acreditei muito em Dostoiévski.

Eu agradeço muito a oportunidade de ter participado deste ciclo aos professores e aos colegas, pois, nesses quase três meses, essa experiência, mesmo tão curtinha, me trouxe um tanto de reflexões que tiveram um efeito enorme em mim.


LABORATÓRIO DE HUMANIDADES
RELATO – HISTÓRIA DE CONVIVÊNCIA
Fernanda Aimée Nobre
Maio 2019

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