O livro escolhido para esse LabHum foi Grandes Esperanças, de Charles Dickens. Devo confessar que me preparei psicologicamente para uma leitura pesada, com muito sofrimento infantil, e não tinha muitas esperanças de uma leitura alegre. Mas Dickens é Dickens, e minha alma não é enorme, mas também não é pequena! Sabia que não iria ficar indiferente ao livro.
(Arte: aquarela de Iêda Aleluia)
Primeiro encontro para conhecer o grupo. Me deparo com pessoas “repetentes” de muitas edições, outros neófitos, outros como eu: nem experientes nem novatos. Mas todos com muita paixão pela leitura, mesmo que sem tanto tempo para ela. Daí que estar no LabHum, é estar no lugar certo para aproveitar a oportunidade de ler, de se encantar com histórias, de fugir um pouco da correria do mundo, e seguir por um caminho diferente.
Ler essa história foi acompanhar Pip no percurso de sua transformação, de suas Grandes Esperanças, e das minhas com o livro. Como disse, imaginei que teria sofrimento sem fim, mas pude ver muito amor na relação de Joe e Pip; muita amizade entre Herbert, Wemmick e Pip; muita sabedoria em Biddy.
A primeira parte do livro foi marcada pela infância de Pip, pelo aparecimento dos personagens que fariam parte de toda a trajetória dele, de muitas maneiras: das mais simples às mais inusitadas. Foi também discutir sobre a angústia que nos permeia ao nos depararmos com maus tratos na infância, e até refletir, que na época de Pip, infância tal como a percebemos hoje, ainda era um conceito em formação.
A história deixa claro também que laços afetivos podem (e muitas vezes são) ser mais fortes do que laços de sangue, e que a amizade é a maior das esperanças. A amizade é o fio de salvação de Pip. A amizade que ele constrói com Herbert, a amizade inabalável de Joe, a amizade discreta de Wemmick, o reconhecimento e a gratidão de Provis e a amizade suave de Biddy. Mas o livro também nos mostra o lado sombrio do afeto, como a raiva e o ressentimento da Sra. Havisham, a frieza de Estela, a inveja e vaidade de Pumblechook, o ódio de Orlick, a ganância e torpeza de Compeyson. A persona performática de Jaggers, que não estabelece vínculos, que evita compromissos, a não ser relações baseadas no poder, no controle.
Percebi nesse livro uma grande viagem de transformação, de individuação, como diria Jung. Pip sai de sua aldeia, de seu destino traçado de futuro ferreiro como Joe, para ser lançado em um mundo novo, com Grandes Esperanças, com um novo destino: se tornar um cavalheiro; mas vai sem mapa e sem orientação nessa nova geografia. É como andar na bruma, ouvindo algo, mas sem distinguir muito bem o que está sendo dito ou mostrado. Pip se confronta com uma sociedade cheia de regras próprias, de estratificação, de relações de poder e de aparências, e segue “olhando à volta” cheio de conflitos internos, seduzido talvez pela fantasia de se tornar um cavalheiro e casar com Estela. Mas nessa bruma, não enxerga bem o caminho a seguir e prossegue numa imitação do que consegue ver. É bonito ver essa caminhada atordoada, mas existe uma certa angústia de perceber que ele pode se perder completamente nessa busca de identidade. Em um certo momento do livro essa perda, essa queda, quase acontece, e o que resgata Pip é o afeto, a amizade.
O conflito de Pip entre sua consciência e o desejo de uma posição social, entre seu passado e o futuro possível, entre as aparências e as decepções, entre a fantasia e a realidade de descobrir quem é seu benfeitor. A vontade de evoluir, e para conseguir isso, acredita ter que se desligar do passado, como se só assim conseguisse apagar os traumas vividos. Mas para evoluir, para crescer e se transformar, não é do passado que ele tem que se livrar, mas sim sair da bruma e enxergar o que tem ao redor de si. E essa consciência vai chegando com a perda do dinheiro, com a perda das grandes esperanças, com a coragem de enfrentar seus medos, com a purificação simbólica do fogo, que com a dor da queimadura provocada, o faz abrir os olhos e ver o mundo real. Com a aceitação da pessoa de Provis. Foi muito bonito ver, e participar, desse caminho de Pip; me senti uma observadora participante, que ria, se emocionava, e se decepcionava também, com cada movimento que ele fazia.
Pip é um “outilier” nessa história, que quebra o ciclo fechado de dor e abandono que vários personagens cultivam. Que aprende com a dor a enxergar verdadeiramente o que é importante, e o que é supérfluo; que aprende a equilibrar-se entre a emoção e a razão.
O final do livro traz a esperança do possível. Me lembra um pouco do ciclo alquímico da albedo (inocência), nigredo (depressão) e rubedo (transformação); é o que acontece com Pip: a inocência cega da albedo se manchando progressivamente, até chegar a nigredo da perda de tudo (dinheiro, posição, amor e inocência), ser transformado no fogo da rubedo, e sair com uma certa melancolia, mas sereno e consciente de si mesmo e do mundo que o cerca.
Penso que esse caminho de Pip pode ser bem o meu, o nosso. Por vezes caminhamos na vida numa inocência cega. Sem saber exatamente quem somos, para onde vamos, se somos esperança de alguém. Até que conseguimos fazer o movimento de acordar e enxergar, para daí, corajosamente, nos jogarmos na incerteza da vida para vive-la da melhor forma possível, para nos tornarmos quem devemos ser. Essa acaba sendo nossa Grande Esperança!
Histórias de convivência do LabHum 2021.2
Iêda Maria Barbosa Aleluia
Enviado em 24/11/2021
Publicado em 03/11/2022