Escola Paulista de Medicina
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Eu não quero ser Praskóvia/Viajando pela Terra dos homens

Estes dois textos foram produzidos por alunas do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal Rural de Pernambuco. São testemunhos resultantes da experiência do Laboratório de Humanidades aplicados naquela universidade pela Profa. Rozélia, participante do LabHum-UNIFESP

e primeira coordenadora de uma "filial" do LabHum em outras paragens. Profa. Rozélia aproveitou a disciplina de "Deontologia" para introduzir a Literatura no âmbito da formação médica e os resultados podem ser observados aqui. Estes testemunhos foram dados oralmente no Primeiro Seminário Humanização em Saúde - a Formação Humanística do Médico do Século XXI, realizado na UFRPE, Recife, nos dias 08 e 09 de Setembro de 2010. Abaixo os dois textos:

Eu não quero ser Praskóvia
Por Maína de Souza Almeida, discente de Medicina Veterinária da UFRPE

Não me lembro ao certo quando li meu primeiro livro. Na verdade, não me recordo de muita coisa da minha infância, que não as brincadeiras de rua e as travessuras na casa dos vizinhos (leia-se pular os muros para explorar o terreno e, de quebra, subir nas árvores para pegar frutas). Acho que estava nos meus sete ou oito anos quando comecei, movida pela curiosidade inerente a toda criança, a folhear os livros que minha irmã mais velha trazia da biblioteca do colégio para casa. Descobri um companheiro de aventuras incomum: o livro de histórias infantis. E, vejam só que surpresa!, era divertido passar meu tempo folheando aquelas páginas, uma após a outra, só para descobrir quando todos iam ser “felizes para sempre”.

Foi só na minha adolescência que me dei conta realmente do prazer que a leitura me proporcionava. Movida pela paixão que meu professor de literatura tinha pela sua matéria e tudo que ela abordava, li (quase) todo livro por ele recomendado. Vi a genialidade de Machado de Assis, no seu Memórias Póstumas de Brás Cubas, me absorver de tal maneira, que daí pra frente, ler era mais que um hábito, era uma necessidade. A adolescência passou e veio o início de minha vida adulta, e com ela a faculdade de Medicina Veterinária.

Que Choque!

Eu confesso que definitivamente não estava preparada para o que viria. Já no primeiro período, perdi boas noites de sono estudando para as provas. Foram as minhas primeiras noites em claro gastas debruçada em cima dos livros, mas não as últimas. Se existe uma coisa que a faculdade me ensinou com magistral eficiência foi parar com o hábito desnecessário de dormir oito horas por noite. Afinal, para que dormir, não é? Aprendi desde cedo que médico não precisa dormir, não precisa comer, não precisa de lazer... tudo que um médico realmente precisa é ter em mente uma quantidade absurda de conhecimento científico aliado ao conhecimento que a prática confere. Ele deve estar sempre preparado para agir de maneira eficiente, mantendo a cabeça fria, afinal, tem uma vida em jogo, e ela depende de seus atos e decisões. Seja competente! Isso que importa.

O negócio é que, além de um punhado de cabelos brancos e olheiras gigantes, a universidade também me deu amigos muito queridos. Engraçado como pessoas com interesses em comum tendem a ficar juntas. Foi assim, um tanto que sem querer, que me aproximei de Maria Clara (“Clarinha”) e Bruna. Compartilhamos o mesmo gosto por livros, música, cinema, o mesmo senso de humor bobo e infantil e a mesma tendência natural ao ridículo. Quantas e quantas vezes não nos surpreendemos com olhares de censura por nosso jeito, digamos, teatral. Durante os últimos cinco anos de faculdade trocamos livros (já é regra, o livro de uma eventualmente deverá ser da outra), músicas, filmes, experiências, lágrimas e risos. A convivência com pessoas tão ligadas a arte, com leitoras tão inveteradas, contribuiu para que eu continuasse a minha relação com a literatura não médica, apesar do crescente espaço que a veterinária ocupou em minha vida com o passar dos anos. Houve uma época, no quarto ano de faculdade, que estive em dois estágios, uma monitoria e um projeto de extensão. Tudo ao mesmo tempo! Saia de casa às 6h e só chegava por volta das 20h, a semana inteira. Quase enlouqueci!

Com esse histórico, não é de se admirar que eu chegasse exausta no penúltimo período do curso. Ah, o décimo período... finalmente a reta final! Lembro de pegar minha grade de horário e ver a segunda-feira. Estava lá “segunda-feira, 7h – Deontologia/Medicina Veterinária”. Ignorei totalmente Deontologia, só me lembro de pensar “Medicina Legal deve ser interessante”. Chegou o primeiro dia de Deontologia que, aliás, inaugurava as aulas do semestre, e eu nem sequer me dei ao trabalho de ir. Minha irmã mais nova, que cursa direito, me preveniu “essa cadeira é muito chata, tudo que você precisa fazer é decorar o código de ética e pronto”. Que perda de tempo! Era só o que me faltava, no fim do curso ter que memorizar uma porção de leis para passar nessa maldita cadeira.

Qual foi minha surpresa quando Maria Clara, a única de nós três que se dignou a ir no primeiro dia de aula, me falou “ela vai usar Nárnia!”. Respondi “ela quem?”, no que ela prontamente me disse “a professora de Deontologia! Ela vai usar Nárnia”. Comofas, eu me perguntei. Usar literatura para ensinar leis era no mínimo curioso, além de contrariar fortemente todas as minhas idéias preconceituosas, já tão bem estabelecidas. Apareci na segunda aula e lá estava a professora Rozélia com um texto na mão “O Bem, o Mal – é tudo igual? O drama das palavras e paixões em Macbeth de Shakespeare” de autoria do professor doutor Dante Marcello Claramonte Gallian. O texto foi utilizado em sala para discussão de nossos valores morais, nossas idéias sobre o certo e errado e como aquilo era aplicado em nossa vida profissional. Tão ou mais eficiente que apenas nos apresentar códigos, o como agir, enquanto Médicos Veterinários, nos foi apresentado de maneira tal, que o que prometia ser a cadeira mais chata do semestre, se tornou a mais interessante. Não só era um alívio em meio as outras matérias, como me trouxe alguns questionamentos enquanto leitora.

A leitura do texto do Prof. Dr. Dante me deixou curiosa quanto a Obra na qual o texto se baseou. Daí para a compra do livro foi um pulo. Encorajada pela discussão em sala de aula, li Macbeth tentando captar cada mensagem, cada lição, busquei na leitura mais que o prazer de uma boa história, busquei aprendizado. Depois de Macbeth, nunca mais li um livro sem tirar algo dele e sinceramente, tenho vontade de procurar cada detalhe perdido nos livros que já li. Por hora, a curiosidade que me leva em busca do próximo livro que eu simplesmente P-R-E-C-I-S-O ler, me impede de voltar aos já explorados. Não tem importância, a melhor coisa dos livros é que eles sempre estão lá, esperando para quando for necessário nos ceder um novo conselho, nos premiar com uma nova descoberta, não importa quantas vezes já o tenhamos lido, a experiência nunca é igual. A história não muda, mas sim o leitor, que nunca será o mesmo após a última linha.

Finalizo comentando sobre o livro do qual tirei a idéia do título deste texto. Li recentemente “A Morte de Ivan Ilitch” romance de Liev Tolstói. O livro chegou a Maria Clara através das mãos da prof. Rozélia, e como livro de uma é livro de todas, ele chegou a mim. Ainda não fui capaz de digerir todas as impressões que o livro deixou em mim, mas tem um questionamento em particular, o das minhas próprias atitudes, que não me deixa em paz. Será que, a profissão que escolhi, que tem guiado todas as minhas escolhas até hoje e que se tornou a prioridade da minha vida, me tornará uma “Ivan Ilitch”? Será esse o preço a pagar? Terei que ser inteiramente racional e sempre fazer o que preciso for para atingir a satisfação no trabalho? Para ser médico, é necessário que se sacrifique sempre uma parte da vida? E se sim, valerá a pena?

Não é só o modo “Ivan Ilitch” de viver que tem agitado minhas idéias. A frieza e o egoísmo de sua mulher, Praskóvia Fiódorovna, a qual se mostra incapaz de sentir genuína preocupação com o companheiro, não passou em branco. Quantas vezes não nos deparamos com “Praskóvias”? Quantas vezes não nos “recompensam” com falsas preocupações? Quantas vezes não dirigimos esses consolos vazios aos outros? São tantas sentenças vazias ditas automaticamente, que quem as profere já nem sabe o que diz, apenas fala o que é esperado porque é o “certo” a se fazer. Só tenho em mente que não quero me transformar em alguém incapaz de me sensibilizar verdadeiramente com a dor alheia, alguém incapaz de lidar com o sofrimento, seja o meu próprio, ou o dos outros. Escolho desde já ter coração. Escolho não fugir. Escolho compartilhar o pesar em vez de me esconder atrás de uma armadura de gelo. Não, eu definitivamente não quero ser Praskóvia.

Viajando pela Terra dos Homens
Por Maria Clara Feitosa, discente de Medicina Veterinária da UFRPE

Existem duas maneiras de ler Terra dos Homens do Antoine de Saint-Exupéry: da maneira como li, e da maneira como irei reler!

Meu nome é Maria Clara Feitosa, sou estudante de Medicina Veterinária na UFRPE e sempre tive interesse por livros. Na minha infância, a estante de minha mãe era constantemente perturbada por minhas mãos e olhos fascinados. Lembro-me da vez que tentei ler um livro que acredito até mesmo agora, já adulta, não vou conseguir entender. Intitulava-se “Nostradamus” e não me recordo do autor. Li cinco páginas e desisti.

Como em todos os outros aspectos da minha personalidade, foi com 15 anos que comecei a ter o gosto por livros que tenho até hoje. Foi quando um garoto, inconsciente do que estava prestes a fazer, me perguntou o que eu gostaria de ganhar de aniversário. Eu, meio tendenciosa, pedi o livro do J. R. R. Tolkien, O Senhor dos Anéis. Sim, estava passando no cinema naquela época. Chamo o garoto de inconsciente porque ele não sabia que estava criando, sem intenção nenhuma, é claro, uma ‘Ringer’. Bom, eu nunca acampei fora do cinema, nem me fantasiei de ‘cosplay’, mas sem dúvida nenhuma fui uma dos puristas que xingavam no cinema o fato do diretor ter cometido a heresia de excluir do filme o personagem Tom Bombadil. Para mim, ele não era um personagem “excluível”! Ponto! Enfim, eu li o primeiro livro umas 5 ou 6 vezes e passei férias inteiras dentro do quarto ao som da Alanis Morissette (não me pergunte porque essa trilha sonora) lendo a trilogia. Ainda hoje me contenho para não começar a compulsão novamente.

Com o tempo a minha estante foi ficando mais cheia. E eu me via carregando um livro constantemente dentro da mochila, para onde quer que fosse. Me lembra uma das personagens principais do seriado americano “Gilmore Gilrs”. A Rory Gilmore me causa inveja até hoje pela quantidade de livros que ela leu. Em algum dos episódios a mãe dela, Lorelai, questionava o peso de sua mochila, e ela respondia que levava muitos livros além dos que ela precisava levar pra escola: “Um para esperar o ônibus, um para a hora do almoço, um para o ônibus de volta, e outro para o caso de enjoar de qualquer um dos outros”, ela dizia.

Eu concluo disso tudo que é de minha natureza ser assim, eu e meus livros. Mas nunca passou pela minha cabeça que eu ainda tinha que aprender a ler e a ser humana. Muito menos que eu iria perceber isso numa disciplina da faculdade. Como assim? Aqui, em meio às disciplinas sobre Doenças metabólicas de ruminantes, inspeção de carne e derivados, clínica de equinos e suínos, uma que eu ignorei completamente.

Estamos acostumados a aulas de ‘oses’: “Bom dia, bacterioses, Introdução, etiopatogenia, sinais clínicos, necropsia, algumas piadinhas no meio, histopatológico, microbiológico, tratamento, prevenção, boa tarde.” Nada contra os professores. Alguns deles são até muito legais. Daqueles que você lembra fácil para o resto da sua vida. Mas não dá para ignorar o fato de que é isso o que eles fazem. Às vezes tão rápido que a mão dói de tanto escrever. Dói até desistir. Até então eu devia saber tudo memorizado para a prova. Não importa para a avaliação se eu sei o conteúdo ou se eu memorizei o conteúdo. A avaliação não se importa com isso.

Esse tipo de matéria dá um nó na sua cabeça! É tanta coisa que você se assusta por não saber de tudo aquilo na ponta da língua. Dá medo pensar que um dia você pode se deparar com algo daquele tipo e não lembrar do que fazer. Dá para imaginar seis dessa ao mesmo tempo? Às vezes nós nos deparávamos com cadeiras menos técnicas e mais conceituais, mas além da baixa assiduidade do professor [isso mesmo, do professor], quando este aparecia, os textos eram tão diferentes do que estávamos acostumados que, por mais simples que fossem, pareciam extremamente difícil de entender. Não davam aquele equilíbrio pretendido.

Primeiro dia de aula do semestre, sete e meia da manhã, todo mundo com olheiras e ‘ressaca’ de férias e em frente à sala de aula falo para quem quer ouvir: “Meu Deus, Deontologia à essa hora da manhã, ninguém merece! Deve ser muito chato!”

Interessante como as coisas acontecem, não é verdade! A porta da sala da professora que ministraria a cadeira naquele semestre era exatamente ao lado do banco em que eu estava sentada profetizando o futuro amargo das nossas segundas-feiras. Eis que a professora aparece logo após isso dizendo: “Ah, vocês são meus alunos de deonto?”

Eu não vou descrever o ‘quase infarto’ que sofri naquela hora, mas eu imediatamente pensei no meu novo futuro que acabara de se formar: “Será que não achei suficiente que as segundas serão tortura pela matéria chata que vamos estudar que tinha de criar um desafeto com a professora desta mesma matéria? Que bom!” Eu não podia deixar de pensar também em como é ‘estimulante ‘ um início de semestre desse.

Ao entrar na sala eu vejo a professora, que já havia começado a falar, com um livro de capa familiar nos braços. Eu aperto os olhos e reconheço a capa com o leão amarelo. Só para constar: para mim, quem lê As Crônicas de Nárnia é uma pessoa legal. Cinco minutos e a até então carrasca se torna uma pessoa legal. E eu nem precisei trocar uma palavra com ela! Foi apenas o tempo de terminar a apresentação da cadeira e da metodologia que seria abordada naquele semestre, e isso levou cerca de meia hora, que minha expectativa para aquela matéria mudou da água para o vinho. Ela ia utilizar As Crônicas de Nárnia para ensinar na veterinária!

A disciplina foi muito mais do que eu havia imaginava que seria. A gente realmente se surpreendeu com algumas pessoas. E isso é bom! Lembra-nos que as outras pessoas também são cheias de todo o tipo de sentimentos que a gente tem. Inclusive as pessoas que conviveram conosco por anos. Porque fechamos os olhos para isso mesmo? Deve ser aquela maldita tendência que o homem tem de olhar para o próprio umbigo como se fosse um deus. A gente acaba perdendo muito a nossa volta por causa disso.

Outra coisa que eu percebi é que por mais que eu leia, eu sei que eu absorvo muito menos do que o autor pretende passar naquele texto. Na verdade, eu descobri que eu não sei ler. Digo isso porque, quando a professora passou um texto sobre interpretações de um livro que eu já havia lido eu fiquei chocada com o tanto de coisa que eu deixei passar. Eu vi daí que em tudo o que eu já havia lido poderia haver coisas que deixei passar por que eu não sei ler. Eu comecei a dar muito mais valor àquele momento de reflexão pós-leitura.

Eu fiquei muito feliz com essa experiência. Não só por mim, mas porque eu tenho certeza que para muitas pessoas ficou alguma coisa que eles até o fim da vida vão lembrar, e, talvez, na hora de tomar algum tipo de decisão ou julgar algo ou alguém, faça toda a diferença.

Não tenho certeza se isso acontece muito. Eu espero que sim, porque mesmo sendo ruim, se for uma coisa comum, quer dizer que é comum superar isso. Mas acontece que você chega ao final de um curso profissionalizante e é opressor o fato de você se ver fazendo um monte de coisas, sabendo um monte de coisas e de repente, não vê mais sentido naquilo. Eu entrei na faculdade querendo distâncias das pessoas, porque eu achava um saco lidar com elas. E sabendo que ia trabalhar com animais silvestres, eu pensava “ótimo, não tem dono”. Mas as relações humanas são inevitáveis, dentro e fora de nós. E ao final, vendo que por causa dessa tendência de me afastar das relações humanas, ficou faltando algo, uma lacuna. Sei que preciso de muito ainda para poder preencher essa lacuna. Sinceramente eu acho que é o tipo de coisa que você nunca pode estar “especializado” o suficiente. Mas talvez simplesmente o fato da pessoa querer seja algo bom, até extraordinário. Não deveria ser. E há quem lute para que deixe de ser. Mas é.

E é por isso que há duas maneiras de ler Terra dos Homens. Uma releitura pode falar muito sobre o que você foi e o que você é agora. Antes, Terra dos Homens era um livro maravilhosamente escrito por um grande autor. Não tenho certeza do que será, mas tenho certeza de que tudo o que eu “vi” junto a ele, agora, vai ser muito mais que aventuras, lugares exóticos e pessoas excêntricas. Eu acho que será um homem enxergando os homens cercados pela Terra.

Concluo com um trecho de um capítulo que Saint-Exupéry dedica ao seu amigo Guillaumet, e acho que agora realmente o entendo: “O uso de um instrumento seco não fez de você um técnico seco. Sempre me pareceu que as pessoas que se horrorizam muito com nossos progressos técnicos confundem o fim com o meio. Na verdade, quem luta apenas na esperança de bens materiais não colhe nada que valha a pena viver. Mas a máquina não é um fim (...)é um instrumento .”

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