Participei pela primeira vez do Laboratório de Humanidades no primeiro semestre de 2011. Inicialmente fiquei muito intrigado com a proposta de, a partir da literatura, ampliar a visão humanística do profissional da saúde. Mas o que, de fato, me atraiu foi a obra a ser lida – “A Divina Comédia – O Inferno”, de Dante Alighieri. Era uma obra que já tinha ensaiado de ler por muitas vezes, e vi ali uma oportunidade para terminá-la.
Então começamos a leitura, e as discussões no grupo. Foi muito impressionante perceber como a obra penetra nas nossas vidas. Parecia como se ela já estivesse dentro de nós. E não estou falando de racionalizações acadêmicas sobre o conteúdo literário da obra; mas sobre a essência, sobre as histórias humanas ali contidas - e o Laboratório proporciona a curiosa experiência de senti-las.
A obra literária nos revela a nós mesmos. Pelas experiências vividas, trazemos nossas próprias experiências de vida à tona. Quando lemos uma obra rapidamente, essas experiências podem passar rápidas demais, pela nossa tentativa de “entender o autor”, o que ele quis dizer; mas, ao mergulharmos em profundidade, a paisagem muda. E quando subimos, trazemos à superfície algo de nós mesmos, junto com as experiências lidas/vivenciadas.
Foi-me impossível deixar de fazer a analogia com minha própria história. Dante começa seu percurso perdido “no meio do caminho da vida”, e na resolução deste conflito precisa entrar no inferno, reconhecer tudo que há lá dentro. Também eu me apresentava no “meio do caminho”, com pouco mais de 40 anos, e com muitas dúvidas quanto a como seguir adiante; mas sempre relutei em entrar em meu “inferno” interior, talvez da mesma forma como sempre relutei em ler esta obra. E, no entanto, é essencial penetrar nos domínios sombrios, trazer à tona os sofrimentos que ali se apresentam, encará-los, reconhecê-los, e superá-los – pois este caminho só faz sentido quando é passagem para o Purgatório (reino de negociação) e, finalmente, para a estação de tranqüilidade e bem estar do Paraíso.
Dante não encontra apenas pessoas más no Inferno. Muitos dos que lá estão são seus conhecidos, e a temática comum a todos é o sofrimento. Manter-se em perpétuo sofrimento – opção pessoal, na maioria dos casos – é o traço comum. Observar isto nos fez refletir o quanto nos mantemos voluntariamente no inferno, no curso das nossas vidas; o quanto não conseguimos nos libertar de nossas angústias, de nossos sofrimentos pessoais. E, se ajuda a compreendermos melhor a nós mesmos, também ajuda a compreendermos o outro em sofrimento.
Caso particular, que comoveu a todos, foi que, durante o semestre, ocorreu um massacre de estudantes em escola do Rio de Janeiro, por conta de um atirador. Impossível o tema não entrar no meio da discussão sobre o inferno. Difícil o ato de “não julgar” o atirador. Quase impossível perdoá-lo. Mas, será que, de fato, somos tão diferentes assim dele? Pois que ele também apresentava seus sofrimentos continuados, ele também estava dentro de seu inferno; e só conseguiu vislumbrar uma saída por esta via tão dolorosa. Entendermos que o que diferencia nossos atos é apenas uma questão de grau nos aproxima, a todos, em humanidade; e nos permite distanciarmo-nos de nossos preconceitos para poder compreender-perdoar-ajudar o outro. De fato, o próprio Dante precisou de ajuda – de Virgílio – para reformular os significados de sua vida. Virgílio (o terapeuta, arrisco a dizer) conduz Dante em segurança pelos caminhos sombrios e perigosos de seu inferno até o paraíso. E assim como encontrei em minha vida diversos “virgílios” que me ajudaram, percebi que todos nós podemos também ser o “virgílio” de outro – note-se que Virgílio não é um anjo irrepreensível de defeitos, ele não vem das altas esferas celestes. Mas conhece o caminho, sabe o necessário para ajudar Dante.
Desta forma, a leitura do livro vai nos deixando face a face com nós mesmos. Cada paisagem desoladora, cada personagem encontrada, com suas histórias, suas mazelas e seus sofrimentos, nos trazem sentimentos, julgamentos, e reflexão; e a humanização parece aflorar internamente, na perspectiva de que o auto-conhecimento possibilite a mudança de rumo de nossa própria vida. Humanização aqui entendida como permitir que aflore o humano dentro de nós, deixando de lado as máscaras e os comportamentos socialmente “esperados”. Poder observar nossa história, refletir sobre nossa vida; perceber os pontos que precisamos melhorar, os nossos sofrimentos, as atitudes negativas que repetimos por vezes de forma inconsciente, bem como as situações que já melhoramos. Ou seja, visitar desassombradamente nosso inferno, sabendo que podemos sair dali para viver melhor.
O Laboratório proporcionou também outra experiência, que foi a leitura de outra obra: “Alice no País do Espelho - e o que ela encontrou por lá”, de Lewis Carrol. Quando a obra foi apresentada, no meio do semestre, fiquei reticente. Pois como uma obra infantil poderia ser objeto de discussão e proveito? Embora soubesse de muitas polêmicas (acadêmicas) envolvendo a obra de Lewis Carrol, parecia estranha esta indicação para os objetivos do Laboratório. Mas a leitura da obra de Dante foi surpreendente, então parti para a leitura, curioso para ver o que poderia sair dali.
E mais uma vez foi muito interessante. Alice, mais que uma personagem fictícia, traz questões absolutamente humanas. A primeira a que me detive foi a do livre-arbítrio. Alice é livre; pois ela faz escolhas pessoais. Decide por si só entrar no espelho, e vai decidindo à medida que encontra dificuldades ou obstáculos. Embora o universo do espelho seja totalmente regrado, por vezes com regras absurdas e totalmente diferentes das do nosso mundo, ela segue adiante. Aceita as regras, é livre mesmo com elas, e segue seu objetivo de tronar-se rainha.
Aliás, que mundo é esse atrás do espelho? Porque, por mais absurdo que ele pareça ser, ao nos determos mais profundamente sobre ele e suas regras, nos parece que ele é mesmo uma metáfora do nosso próprio mundo. Uma caricatura, onde se exageram alguns traços – mas que estão presentes no original.
E isto trouxe (e respondeu a) uma inquietação filosófica: como se pode ser livre se temos tantas regras para seguir, às vezes absurdas? Ora, o que nos faz livres não é a existência ou ausência de regras; é a nossa possibilidade em buscar os mais altos fins da nossa existência. É aparentemente paradoxal como ser livre acaba por implicar em desapego e renúncia; para o mundo, visto por um prisma exclusivamente racional, isto parece não fazer sentido. Mas é engano; pois não existem apenas as regras, existem as pessoas, existe a vida se organizando e reorganizando a cada momento. Por vezes é necessária uma reformulação completa do plano inicial, e no curso das nossas vidas estão outras vidas, outras histórias, outros objetivos.
Alice, por todo o tempo, mostra-se solícita, atenciosa, profundamente humana no cuidado para com o outro. A cada encontro, ela percebe as necessidades do outro, e dá de si mesma e do seu tempo para o outro. Mesmo quando apressada, ela resolve ficar. E nada disto a faz ficar mais distante da sua meta; ao contrário, ao dar espaço para o acaso, surgem novas possibilidades para sua vida.
As histórias de convivência de Alice, portanto, foram outro ponto tocante. No caminho dela, surgem muitos imprevistos, atrasos, poesias longas a serem contadas na hora de seguir adiante, lugares que se transformam subitamente, que a transportam para longe – aliás, isto nos remete a um mito da modernidade: o do homem estar no controle dos processos todo o tempo. Alice não tem controle sobre os acontecimentos: sobre o que ocorre na sua trajetória, sobre os processos... e no entanto tudo segue adiante. Tudo segue seu curso – embora não exatamente da forma como Alice havia planejado, mas segue, e acontece. Mas, se há contrariedades diversas, Alice não precisa de muito tempo para se adaptar às novas realidades. Alice quase não se contraria; quando isto acontece, em muito pouco tempo resolve. O sentimento egocêntrico não domina Alice: apesar de seguir adiante em seus objetivos, sempre encontra tempo para doar ao outro, formando uma história pessoal de convívio, liberdade e respeito.
E assim encerramos o semestre. Percebi que nossa vivência diária é permeada pela literatura, pelas experiências humanas das personagens. Percebi que o espelhamento e o confronto com elas pode nos ajudar a modificar nossas atitudes – quantas vezes são tão parecidas!
E entendi como opera o Laboratório de Humanidades. Como podemos, a partir da literatura, ampliar nossa visão humanística, ampliando nossa visão do humano dentro de nós mesmos. E, reconhecendo dentro de nós a humanidade, reconhecemos nossas virtudes e nossos defeitos, mas principalmente reconhecemos as potencialidades de nos transformarmos, de sermos melhores. E isto naturalmente é amplificado para o outro, sob duas formas. A primeira é a de que, ao me modificar, modifico também minha relação com o outro, transformo nossa história conjunta, mudo nosso caminho para melhor. E a segunda é a de que, ao me compreender humano, assim compreendo também o outro, o que possibilita afastar meu olhar da superficialidade e olhar o outro em profundidade, aumentando minha tolerância e compaixão. No limite, ao modificar-me, modifico o cuidado que tenho para com o outro, e começo a modificar o que costumamos chamar de “a sociedade”.
LABORATÓRIO DE HUMANIDADES
RELATÓRIO DE FINAL DE SEMESTRE – 1/2011
ALUNO: PAULO SERGIO JORDÃO DARUICHE
mestrando – Saúde Coletiva