Escola Paulista de Medicina
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Trabalho de Conclusão de Curso, por Maria Auxiliadora

LabHum

Cenário inusitado, único
Local em que se é possível
Compartilhar
Sentimentos
Até mesmo emoções
E, sobretudo, entendimento

Junho de 2012. Mais um ciclo do LabHum se encerra e começamos a nos despedir dos personagens que povoaram as narrativas de vida e morte e com os quais interagimos no último semestre. Alguns deles estavam iniciando a vida, outros dela se despedindo. Mas os sentimentos, emoções e entendimento por eles despertados já são partes inerentes de cada um de nós, de tal forma que, muitas vezes, já não podemos discernir onde eles terminam e onde começamos nós.

Alguns dos personagens invadiram literalmente nossas vidas, despertando emoções escondidas e possibilidades jamais sonhadas: “acho que não seria tão difícil assim matar meu marido.” E a isso voltaremos mais tarde. Porque com Os Anos de Aprendizado de Wilhem Meister, a primeira obra adotada como fonte de reflexões no LabHum neste semestre, seguimos uma trajetória quase calma e sem tropeços.

No início, embarcamos desconfiados e relutantes em um velho e lento trem a vapor, como aqueles que só existem nas telas de cinema, para acompanhar nosso personagem – Wilhem Meister – em seus anos de aprendizado. Muitos de nós sofremos a tentação de saltar do trem antes do término da viagem, acreditando que não iríamos ter a paciência para acompanhar aquele jovem em meio a intermináveis descrições da vida da burguesia e nobreza alemãs da segunda metade do século XVIII. Aquele talvez fosse mais um jovem mimado, que nunca sofreu dificuldades na vida e que quis experimentar uns momentos de rebeldia antes de assumir definitivamente a vida burguesa, como tantos outros que conhecemos na vida e na literatura.

Mas a leitura compartilhada instigou-nos e impediu que abandonássemos o jovem Meister. E a suposta monotonia deu lugar a uma viagem surpreendente que, repleta de altos e baixos, ia conduzindo-nos inexoravelmente à luz. Apreendemos com os companheiros de jornada que aquele era um romance de formação e a leitura compartilhada mostrou-nos que formação vai muito além de conteúdos intelectuais que propiciariam uma educação formatada e refere-se ao aprimoramento da personalidade capaz de resultar em mestria para a vida. Para Wilhem era essencial a busca pelo autoaprimoramento, o qual seria impossível dentro de uma vida dedicada ao comércio. Assim, a formação do jovem Meister passou por sua entrega ao teatro, às artes, e o ponto culminante dessa fase foi a encenação de Hamlet. E, aqui, mais uma vez, o nosso velho e sempre atual Shakespeare, penetrando como ninguém nos recônditos da alma humana, foi capaz de organizar e clarificar os sentimentos e dúvidas de Wilhem, para fazê-lo renascer em uma nova realidade em que, parafraseando Hegel, ocorre a superação do conflito entre a poesia do coração e a prosa das relações sociais.

Tudo isso, e também o tom de mistério da Sociedade da Torre a permear toda a narrativa, fez com que fôssemos capturados. Todos fomos conquistados pelo jovem Meister, quando, enfim, constatamos que, afinal, o que fazemos em cada ciclo do LabHum é repetir sua jornada de aprendizado. Muitas vezes, uma troca de opiniões apaixonadas deu vida a nossas reuniões, o que não impediu que o aprendizado se desse de forma natural e suave. Assim, nem percebemos o tempo passar e já estávamos especulando em como teriam sido Os anos de peregrinação de Wilhem Meister, quando soubemos que ele se tornou médico e, subitamente, fomos lançados a um vale de sombras para acompanhar Alaíde durante os momentos que antecederam sua morte.

Dessa vez a jornada foi muito difícil, pois Alaíde vagava em uma zona intermediária que mais se assemelhava a um dos círculos infernais de Dante. E a questão inicial era: será que ela conseguiria escapar daquela situação tão restrita e limitada, que desde o início foi muito perturbadora a todos nós. Em todos esses anos no LabHum, apenas uma personagem suplantou Alaíde no que diz respeito ao grau comoção causado. Esta personagem foi Lady Macbeth.

Nesta vida, uma das maiores bênçãos é morrer em paz. São poucas as pessoas assim abençoadas. É melhor que a conquista da paz almejada ocorra ao longo de uma vida vivida com sabedoria e discernimento e norteada por um sentido que lhe dê significado. Mas ainda há outra forma de se atingir tal bênção. Esta geralmente ocorre com as pessoas que experimentam uma doença crônica e mortal. Esta pode representar um estímulo à reflexão e permitir que o doente reescreva sua vida por meio de uma narrativa de reconciliação, despedida e perdão. Assim, a morte pode vir a ser um momento de libertação, em que todos os desejos e apegos são cumpridos ou liberados.

Com Alaíde, personagem central de O Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues, foi bem diferente. Nesta peça de teatro Alaíde tenta, aparentemente sem sucesso, reescrever sua vida em seus momentos finais. Tal tentativa ocorre em diferentes planos de consciência: os planos da alucinação, memória e realidade que se alternam em uma dança frenética para compor uma narrativa fantástica. Nestes planos a morte é quase onipresente e está constantemente vinculada a um vestido de noiva, quer seja o vestido de casamento de Alaíde ou o vestido com o qual madame Clessi teria sido enterrada.

O vestido de noiva, que usualmente é símbolo da pureza e do início de uma vida a ser compartilhada, pareceu representar a falsidade de uma sociedade perversa e imediatista. O “esporte preferido” de Alaíde era roubar os namorados da irmã. E isso ocorria em uma família ausente e que aparentemente somente se preocupava com as aparências, terreno fértil para o cultivo de todos os abomináveis sentimentos e emoções sempre presentes em todos esses planos. A família de Alaíde nos remete às conhecidas palavras de Tolstoi em Ana Karenina, a próxima obra cuja leitura será compartilhada no LabHum: “todas as famílias felizes são iguais, as infelizes cada uma é infeliz à sua maneira”.

Alaíde conseguiu, enfim, por capricho e vaidade, casar-se com aquele que era o grande amor de sua irmã. Fazendo isso, colaborou para solucionar as questões financeiras de sua família que, por sua vez, preferiu, mais uma vez, ignorar sua conduta, como era o habitual. A questão é que ódio, revolta, traição, vaidades e orgulhos feridos, sentimentos tão bem retratados nesta peça, não costumam acabar bem, nem na Literatura nem na vida. Neste caso, conduziram ao atropelamento de Alaíde. Teria este sido resultado de homicídio, suicido ou acidente? Acho que nunca saberemos. Mas não é isso que importa.

O plano físico retrata claramente a desumanização tão firmemente arraigada em alguns segmentos da sociedade moderna. É certo que os médicos até tentaram, aparentemente, fazer algo bom. Mas, dentro da ótica positivista em que atuavam, não conseguiram grande coisa. Simplesmente usaram a tecnologia disponível na ocasião e trataram de acalmar a família afirmando que a paciente não estava sofrendo e não havia sofrido em nenhum momento por ter entrado em coma logo após o traumatismo sofrido. Como se pudessem ter essa certeza... E veio a mente as vezes sem número em que presenciamos cenas semelhantes nos mais diversos cenários de prática da medicina.

Os repórteres também não demonstraram a menor sensibilidade. Empatia e compaixão passaram longe de sua conduta. O que importava era vender jornais e as histórias de sangue e morte vendem muito, principalmente quando ocorrem com pessoas da alta sociedade, como era o caso de Alaíde, que havia ascendido socialmente graças ao casamento com Pedro.

O fato é que Alaíde estava sozinha, como estão todos que se encontram acorrentados por toda a eternidade nos círculos dantescos e infernais. Na verdade, talvez Alaíde estivesse ainda em uma encruzilhada, com possibilidades de ascender ao purgatório ao momento de sua morte. Então surge sua única esperança, na figura de madame Clessi, que alguns compararam a Virgílio, aquele que guiou Dante em segurança nos círculos do inferno e purgatório. Durante toda sua vida, a madame havia sido desprezada por todas as outras mulheres de bem, que dela se desviavam com asco em decorrência do papel que representava na sociedade. E, no entanto, esta foi a única referência a que Alaíde pôde se apegar na situação delirante em que se encontrava. Ao menos Clessi havia sido uma mulher verdadeira e autêntica, fato que era muito bem conhecida de nossa anti-heroína, graças à leitura do velho diário escrito pela primeira. E Alaíde parecia admirá-la. Mesmo sem ser um Virgílio, talvez madame Clessi, por sua generosidade e autenticidade, fosse a única capaz de apontar a Alaíde a saída do inferno em que mergulhara. Mas esta preferiu outra opção. Na morte continuaria a perturbar o casamento de sua irmã, assim como em vida havia destruído todos os seus namoros.

Ao fim deste ciclo de leitura, a imagem de duas mulheres vestidas de noiva e com os rostos deformados pairava em nossas mentes. O sentimento predominante era o de frustração, pela absoluta falta de possibilidades de transcendência. Frustração e certo desconforto, por termos compreendido que seguir Alaíde em sua jornada não é uma probabilidade assim tão remota, uma vez que os mesmos sentimentos e emoções que a animavam puderam ser reconhecidos em nosso interior. Se alguns participantes do LabHum se sentiram tentados a seguir Wilhem Meister em seus anos de peregrinação, com Alaíde deu-se o contrário. E dada sua morte violenta nem ao menos conseguimos dela nos despedir. Tratamos apenas de incorporar os ensinamentos que ela nos transmitiu sem ao menos tê-los apreendido – que não há crime sem castigo, que não há falta que não possa ser perdoada e que os caminhos da humanização têm de passar pelo exercício do amor, da compaixão e da empatia, sentimentos que também existem em nosso interior e são constantemente fomentados nas reuniões do LabHum.

E para nos libertarmos definitivamente do vale das sombras em que convivemos com Alaíde, mais uma vez evoco as palavras finais de Tolstoi em Ana Karenina – “Continuarei, sem dúvida, a impacientar-me com o meu cocheiro Ivan, e discutir inutilmente, a exprimir mal as minhas próprias ideias. Sentirei sempre uma barreira entre o santuário de minha alma e a alma dos outros... Continuarei a rezar, sem saber por que rezo. Que importa? A minha vida não mais estará à mercê dos acontecimentos, cada minuto da minha existência terá um sentido incontestável. Agora possuirá o sentido indubitável do bem que eu lhe sou capaz de infundir!” E que estas palavras sejam a inspiração para nosso próximo ciclo de leitura, já que apontam para a ideia de que a transcendência é possível, mesmo para estes comuns mortais que insistentemente buscam viver em equilíbrio e harmonia por entre os pares de opostos.

Trabalho de Conclusão de Curso
Por Maria Auxiliadora Craice De Benedetto
2012 - 1º Semestre

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