INTRODUÇÃO
O presente artigo resulta dos eventuais questionamentos sobre o “ser ou não ser” a experiência do Laboratório de Humanidades (LabHum) terapia de grupo.
Tais questionamentos são motivados ora por exclamações: “certamente o LabHum é uma terapia para mim”, ora interrogações: “ é terapia ou é terapêutico?”, por vezes reticências “ me faz tão bem...é quase uma terapia...” e finalmente negações: “não é terapia, não tem intenção dirigida de manejar problemas individuais ou do grupo”.
O LabHum como iniciativa do Centro de Historia e Filosofia aplicadas à Saúde (CEHFi) da Universidade Federal de São Paulo resulta da intenção formativa dos estudantes de graduação e pós-graduação no sentido de refletirem e desenvolverem visões ampliadas e “humanizadas” do ser e fazer em saúde.
Nesse processo, doutores em História e Filosofia da referida instituição sem intenções de desenhos ou pressupostos teóricos ligados a quaisquer orientação psicológica, estabelecem uma metodologia de interação com os estudantes através de leitura de obras clássicas da literatura.
Considerando assim a diversidade das vivências de sentido sobre o LabHum buscamos olhar a partir, e daí para além das experiências, como forma de mergulho de fato no tema.
Algumas narrativas dessa autora com uma doutoranda atuante no LabHum representam alguns determinantes do presente enfoque, tais como:
“... A primeira vez que estive no LabHum ouvi uma pessoa falando tanta coisa de si identificada na obra que pensei...se isso virar terapia de grupo vai ser muito chato.”
“... A expressão de afetos não é exclusividade do setting de uma sessão de terapia”
“... É como se ao participar do LabHum tivéssemos miragens que nos sugerissem momentos que parecem terapia”.
Registramos aqui tais frases por sua importância no percurso de pensar que resultou na metáfora-síntese da miragem descrita a seguir, pois como síntese de significantes (diria um psicólogo lacaniano) tornou-se o mote condutor escolhido para esse artigo.
Ainda assim e coerentes com o próprio processo do LabHum buscamos também aqui na descrição admitir e legitimar a pergunta com a intenção ampliada de fugir do percurso linear que levaria à “resposta certa, imediata” e trazer junto com isso os elementos que motivam o existir do artigo.
Desse modo, partimos da apresentação dos pontos de ressonância e dissonância que motivam o eventual questionamento, uma vez que ocorrem no LabHum uma miríade de fenômenos humanos frequentemente identificados ora como terapia, ora como terapêuticos.
SINTESE DOS ENCONTROS DO LABHUM
Em resumo podemos dizer que os encontros, a partir da leitura e discussão dos clássicos da literatura, objetivam estimular e permitir as narrativas dos participantes de modo que suas impressões cognitivas e afetivas (estéticas) possam ser ventiladas livremente e o moderador do grupo mantenha o grupo focado nas possibilidades de compreensão da obra.
Ou seja, Podemos dizer que a proposta do LabHum é a de perrmitir a reflexão sobre as possibilidades de ser e estar do homem no mundo refletidas na literatura, gerando a compreensão da iniciativa como proposta “humanizadora”.
O princípio implícito e permanente sine qua non dos encontros é a discussão dos fenômenos humanos-estéticos e menos análises eruditas da estrutura da obra, muito embora todas as perspectivas sejam aceitas como espectro diverso das impressões e opiniões captadas.
Assim a proposta humanizante do LabHum pressupõe a liberdade de que seus participantes não tenham a intenção de elaborar respostas absolutas mediante a relatividade diversa de possibilidades do ser e viver humano.
Como síntese da sequência lógica do LabHum descrevemos as seguintes etapas de seu processo:
i. A anunciação da obra ao grupo;
ii. O período de leitura individual;
iii. O compartilhamento em grupo das histórias de leitura;
iv. O compartilhamento de reflexões nos itinerários de leitura (em que se dá a reflexão dos grandes momentos evolutivos da obra);
v. As histórias de leitura em que os participantes registram verbal e posteriormente por escrito sua experiência com a obra no LabHum.
A intenção reflexiva é a de permitir a expressão das percepções, pensares e afetos que eclodiram na leitura individual e que eclodem na alteridade das experiências compartilhadas, livremente expressas e reconhecidas.
Podemos dizer que os pressupostos básicos do LabHum são os da(o):
1. Experiência estética singular;
2. Encontro reflexivo;
3. Possibilidade de alteridade; como elementos do fortalecimento e resgate das possibilidades de ser e estar no mundo.
MIRAGENS DE TERAPIA NO LABHUM
O presente subtítulo pretende agregar à discussão certa dimensão fenomenológica produzida por algumas experiências e percepções sobre o LabHum ser terapia, terapêutico ou qualquer outro termo que o aproxime desse contexto, de modo a esclarecer os possíveis motivos dessas impressões.
A liberdade expressiva e a complexidade das obras escolhidas no LabHum costuma gerar de modo natural uma multiplicidade de direções e sentidos do “pensar-sentir”, tão abrangente quanto o amplo, diversificado e mesmo ambivalente espectro de percepções, intenções e sentimentos característicos da natureza humana.
Pretendemos, assim fazer da questão do “ser ou não ser” o LabHum terapia de grupo o mote temático para a reflexão do leitor convidando-o a nos acompanhar e lançar luzes sobre os significados dos termos miragem e terapia para seu maior esclarecimento.
Aqui em analogia descrevemos os reflexos e sensações comuns advindas dos participantes e provenientes de diversos aquecimentos internos gerados pela leitura e sua experiência pessoal.
Tais aquecimentos individuais são produzidos pelo pensar e sentir individual e depois em grupo em que surgem as impressões e afetos associados às diversas experiências estéticas da leitura. Aquecimentos humanos, singulares que são permitidos, que espontaneamente surgem e se compartilham sem serem provocados ou evocados, tão somente permitidos no contraponto da crise de legitimidade tão atual nos dias de hoje.
O termo “aquecimento” sintoniza-se coerentemente com os termos “laboratório” e “humanidade” e a descrição que se segue buscará expressar isso ligando-os ao termo miragem.
Do registro mnemônico para o termo laboratório sobrevêm a imagem de grandes bancadas e visão de fumaças em que quando estudantes costumávamos observar os fenômenos da biologia, física e química.
O laboratório era o lugar da experiência nua e crua, de calor real, prático de onde podíamos experimentar como alquimistas a reunião dos elementos e manejar sob os olhos de monitores e professores o que ocorria diante de nossos olhos.
Eventuais lembranças podem sugerir ser o laboratório um lugar perigoso, quase sempre fechado. Outras vezes, inofensivo, porém potencial, com suas bancadas sempre vazias, limpíssimas. Olhado de fora por pequenas janelas sendo possível ver-se os grandes e altos armários e dentro deles um grande número de frascos com seus ingredientes “mágicos”.
Podem sobrevir desse mergulho no laboratório eventuais dimensões de aventura e outras mórbidas. Os frascos com animais peçonhentos mortos, os fetos de diferentes épocas gestacionais, os pulmões, coração, rins, olhos, ossos. Só rompendo a morbidez desse cenário o esqueleto de aparente sorriso e artificial constituição de parafusos e arames que dava confiança para apelidos e frequentes brincadeiras.
Outro aspecto de surpreendente para a autora como participante do LabHum é a própria coerência do nome Laboratório de Humanidades que por si só explica as convergências dos fenômenos físico-quimicos (cognitivos-afetivos) próprios dos humanos decorrendo grande riqueza e adequação da palavra miragem como aspecto de comparação.
Miragem segundo o dicionário Aurélio refere-se ao efeito óptico, frequente nos desertos, produzido pela reflexão da luz sobre a superfície comum de camadas de ar aquecidas diversamente, sendo a imagem vista, geralmente em posição invertida. Visão fantástica, enganosa. Ilusão sedutora; engano.
Mas refeitos das possíveis excursões sobre os termos podemos perceber a adequação do nome Laboratório de Humanidades ao tratar-se de fato de um lugar de possibilidades e iniciação de fenômenos humanos retratados na obra.
E finalmente quanto aos termos terapia e terapêutico o Laboratório de Humanidades pode ser comparado em escala macroscópica como o espaço que permite experiências de leitura. Nessas os ingredientes, reagentes, mortos ou vivos são ofertados pela experiência literária isolada e depois compartilhada. E em aspecto microscópico pode ser tomada
como possibilidade de experiência interna a partir das possibilidades de liberdade humana, em que a decisão interna da jornada é perceber-se, conter-se ou expandir-se nas suas idiossincrasias com os personagens, acontecimentos e dilemas presentes na obra.
Assim é que nas leituras ainda solitárias de cada obra alguns indivíduos revelam posteriormente no grupo seu sentimento mais ou menos provocado, por vezes convocado pela obra.
Há experiências de leitura que retratam aspectos poéticos de uma quase abdução do leitor tomado pela obra, comparável em analogia quase a um canto de sereia em como por ressonância os traços, atitudes e características dos personagens qual diapasão toma a atenção, conduzindo os leitores a um mergulho que os levam ao universo da obra em um continente muito maior que para alguns revela surpreendentes descobertas de si próprios e mais ainda, em toda a humanidade.
Esses elementos são vividos individualmente e por vezes compartilhados no grupo e em nada diferem dos raros momentos de encontro legítimo da atual sociedade marcada pela banalização da experiência e do encontro.
Nesse laboratório de humanidades as reações químicas são internas e provêm das ressonâncias de quem lê a obra. Os fenômenos eclodem da obra sem intenção de aquecer ou esfriar qualquer coisa, mas de tão somente compartilhar e respeitar as experiências advindas da literatura sem interpretações ou conclusões.
As histórias na literatura tratam de um universo de temas humanos: amor, desamor, ódio, inveja, formação, formatação, solidão, coragem e de tantos outros temas tão intrinsecamente pertencentes a nossa natureza.
Os condutores do processo são de formação consistente e abrangente em filosofia e literatura e devem possuir habilidades em permitir e conduzir o grupo em suas aproximações da obra, favorecendo a partir das mesmas a troca respeitosa, sem provocação de polarizações.
Já os termos terapia, terapêutica e terapêutico derivam essencialmente do grego e do primeiro therapeía advêm múltiplos significados que vão do “servir”, “assistir” e “tratar” a partir de certos princípios, meios ou fundamentos.
Mas se aprofundarmos outros sentidos do termo terapia ele surge também como iniciação, como processo em é possível adentrar uma dimensão nova, uma diversidade de momentos podem nos mover em novas direções.
Como dissemos anteriormente o elemento que descaracteriza o LabHum como intervenção terapêutica de grupo é justamente o fato de seus condutores não possuírem ou utilizarem arcabouços teóricos e metodológicos que pretendam direcionar pensamentos, sentimentos ou comportamentos do grupo em quaisquer direções, exceto a da aceitação respeitosa das diversas formas de ser e viver próprias da condição humana compreendo vezes sim, por vezes não seus determinantes.
Porém ao tratarmos de psicoterapia o termo pressupõe a figura de um orientador capacitado para dirigir o processo terapêutico: o psicólogo, o psicanalista ou psiquiatra cuja formação específica nos fenômenos psicológicos o instrumentalizaria com recursos para compreender e ajudar os pacientes a lidarem com questões específicas do sofrimento/adoecimento humano e desenvolverem aprendizagens e habilidades para lidar com tais questões o que não configura em momento algum a dinâmica do LabHum.
CONCLUSÃO
Como ressaltamos na introdução elaborado por mestres do campo da Filosofia e História o LabHum não fora desenhado como proposta de terapia em grupo.
Buscamos com o desenvolvimento do artigo justificar as possíveis motivações e miragens que possam justificar as dúvidas e trazer à tona alguns esclarecimentos indispensáveis.
Nesse processo finalmente podemos também apontar como características definidoras das Terapias de Grupo os seguintes aspectos que não estao presentes no LabHum e que podemos dizer característicos das intervenções terapêuticas para grupos :
Possuírem corpo teórico de fundamentos ou diretrizes conceituais sobre o pensamento e comportamento humano;
Utilizarem teorias e métodos que o terapeuta toma por base para identificar e manejar as questões individuais e coletivas no grupo;
Terem a finalidade de colaborar com a construção de respostas ou sínteses do grupo.
Assim de modo pragmático e tácito, aliviando quaisquer angústias de controle e incerteza ética e legal podemos afirmar que o LabHum não é terapia de grupo.
Por Dra. Tânia de Abreu Carvalho (Psiquiatria / Medicina de Família & Comunidade )