Escola Paulista de Medicina
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Viver é também morrer

unamuno nevoaRelato de experiência de Karina Camasmie Abe a partir da obra Névoa, de Miguel de Unamuno.

História de Convivência

“Nisto passou pela rua não um cachorro, mas uma elegante beleza,
e Augusto foi atrás de seus olhos, como que atraído
por um ímã e sem se dar conta disso.” (p. 40)

Augusto Perez, logo na primeira página da nivola, sente-se atraído por um olhar, que o desnorteia por um longo período de tempo. Esse olhar foi o único elemento, em muitos anos de vida, que tirou Augusto do “passeio” pela vida, “Porque Augusto não era um caminhante sim um passeante da vida.” (p. 39). Com esse olhar, Augusto caiu na ilusão da sua realidade, começou a observar mais ao seu redor, via, sentia, parecia viver pela primeira vez. Isso me fez pensar em como é difícil olhar as coisas de verdade, somos todos, em certa medida, passeantes da vida, olhamos e não vemos, caminhamos, mas não sentimos, convivemos, mas não interagimos. Será que não temos mais tempo para olhar ou não temos mais interesse em olhar?

Apesar do Augusto ser um homem que vivia de rendas familiares, não necessitando trabalhar para se sustentar, ele não parecia, em um primeiro momento, se ocupar de nada a mais do que ser um passeante da vida, não se aprofundando em nenhum estudo nem mesmo relacionamento. Mas, como Augusto mesmo coloca no início do livro, todas as atividades não são senão distração? Ou talvez um jogo? E se tudo é jogo e se todos os jogos são distração, a ociosidade de Augusto não era diferente da ocupação dos outros homens, jogue-se bem ou mal.

Lembrei de uma passagem de Sêneca, no livro Sobre a Brevidade da Vida e achei muito pertinente à descrição do Augusto:

“Finalmente, todos concordam que um homem ocupado não pode fazer nada bem: não pode se dedicar à eloquência, nem aos estudos liberais, uma vez que seu espírito, ocupado em coisas diversas, não se aprofunda em nada, mas, pelo contrário, tudo rejeita, pensando que tudo lhe é imposto. Nada é menos próprio do homem ocupado do que viver, pois não há outra coisa que seja mais difícil de aprender. Professores das outras artes, há vários e por toda parte, dentre algumas dessas, vemos crianças terem atingido tanta maestria, que chegam até a ensiná-las. Deve-se aprender a viver por toda a vida, e, por mais que tu talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer. Muitos dos maiores homens, tendo afastado todos os obstáculos e renunciado às riquezas, a seus negócios e aos prazeres, empregaram até o último de seus dias para aprender a viver, contudo muitos deles deixaram a vida tendo confessado ainda não sabê-lo - e muito menos ainda o sabem os que mencionei acima. Creia-me, é próprio de um grande homem e de quem se eleva acima dos erros humanos, não consentir que lhe tomem um instante sequer da vida, e assim toda sua vida é muito longa, uma vez que se dedicou todo a si próprio, não importa quanto ela tenha durado.

Nem um instante dela permaneceu descuidado ou ocioso, ou esteve subordinado a um outro e, portanto, ele, seu guarda parcimonioso, não encontrará ninguém que julgue ter vivido dignamente a ponto de querer trocar sua vida com a dele. Portanto, a este seu tempo foi suficiente, mas àqueles que tiveram muito de sua vida subtraído pelo povo, ela necessariamente faltou. E nem por isso há motivo para pensares que eles às vezes não compreendem seu erro. Certamente ouvirás muitos dos que são esmagados por sua grande prosperidade, vez por outra, exclamar de entre a multidão de clientes, ou de seus processos jurídicos, ou de outras honoríficas misérias: "Não me deixam viver!" E haveriam de deixar? Todos os que te reclamam para si te afastam de tuas ocupações. Quantos dias te tomou aquele réu? E aquele candidato? E a velha, já cansada de enterrar herdeiros? E aquele que finge ser doente para excitar a cobiça dos caçadores de testamentos? E aquele amigo poderoso, que te mantém, não em sua amizade, mas em seu cortejo? Faz o cômputo dos dias de tua vida: verás que restaram muito poucos dias para ti mesmo. (Sêneca, in Sobre a Brevidade da Vida)

Pensando nesse trecho e em Augusto, concluí que o sentido da frase “Nada é menos próprio do homem ocupado do que viver”, pode ser aplicado à Augusto, que era um homem desocupado e, apesar de parecer que era um homem ocioso, ele, em sua ociosidade, conseguiu despertar-se com um olhar. Quem de nós pode dizer que está aberto e atento a viver isso? Podemos criticá-lo por ser desocupado, mas Augusto vivia a seu modo, afinal, não se deixa de viver só porque não se trabalha. E Augusto abriu-se para um momento único que modificou toda a sua vida. Hoje estamos tão ocupados que é difícil dizer se vivemos ou se existimos. E ao ler sobre a desocupação do Augusto, tenho a impressão negativa, “um desocupado”, quando, na verdade, qual a diferença de ele gastar o tempo passeando ou gastar o tempo trabalhando?

Segundo Sêneca, “Deve-se aprender a viver por toda a vida, e, por mais que tu talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer”. Acho que foi exatamente isso que aconteceu à Augusto, ele concentrou toda sua experiência em um curto espaço de tempo. Ele viveu muito tempo numa névoa, perambulando, passeando, até que viu algo na névoa, que foram os olhos de Eugênia. Depois disso, travou a vontade de relacionar-se e, quanto mais aprendia a viver vivendo, mais se encaminhava ao aprendizado da sua morte. Em um espaço tão curto de tempo, aquele que eu julgava imaturo, ocioso, infantil, mostrou-se capaz e corajoso ao conversar pessoalmente com seu autor e enfrentá-lo. Deparou-se com sua própria sentença de morte e, ao final de um curto período de tempo, Augusto transformou-se em outra pessoa, ele tinha vivido realmente, não simplesmente existido.

Hoje dedicamos muito tempo a realizar tarefas, somos “tarefeiros”, muito pouco lembramos de “ser”, enfatizamos o “fazer”.

Como diz Augusto: “Não era acaso um modo de matar o tempo? - Lutaremos! (...) Minha vida já tem uma finalidade: tenho agora uma conquista para levar a cabo.” (p. 49). E quando Augusto começou a viver esse desafio, mal sabia onde todo esse modo de matar o tempo lhe levaria. Viver realmente é muito perigoso.

O enamoramento de Augusto por Eugenia abre-o para a vida “E agora me brilham no céu de minha solidão os dois olhos de Eugenia. Me brilham com o resplendor das lágrimas de minha mãe. E me fazem crer que existo. Doce ilusão! (...) Graças ao amor, sinto o fardo da alma, a toco.” (p. 75). Sendo um sentimento, verdadeiro ou não, não valeu a pena? “O amor precede o conhecimento, e este mata aquele.” (p. 54). Augusto acha que ama Eugênia, mas quando ela aceita ser sua noiva, ele não se sente muito à vontade com algumas de suas exigências, começa a conhecê-la melhor e esse conhecimento revela que Augusto sofreria com ela. Quando ela o deixa, Augusto sente, de verdade, um alívio, mas também uma imensa humilhação. Alívio por dentro, humilhação por fora, frente aos outros. Independente do caso, ele se relacionava com o mundo, estava inserido na realidade coletiva, pois “O sonho de um só é a ilusão, a aparência. O sonho de dois já é a verdade, a realidade. Que é o mundo real senão o sonho que sonhamos todos, o sonho comum?” (p.106). Esse trecho me chamou muito a atenção, pois coloca a realidade no plano do sonho, e faz sentido, pois a realidade não seria a união de diferentes pontos de vista sobre alguma coisa? Quando várias pessoas afirmam que algo aconteceu, consideramos que algo, de fato, aconteceu. Mas o modo, o tempo e o espaço onde aconteceu é totalmente dependente da subjetividade e ponto de vista da pessoa, o que torna a realidade sempre subjetiva. Por isso considerar a realidade um sonho comum que se sonha junto é uma definição muito sensata. Dessa forma, a realidade possui uma raiz no mundo da ilusão. Isso não seria bom ou ruim, a priori, e sim, uma característica do homem.

O autor colocou o Orfeu exatamente para fazer o contraponto entre o ser social e o ser fisiológico. Tendo o homem sido dotado da fala, automaticamente, inventou a mentira e passou sua fisiologia a segundo plano. Sendo a realidade uma ilusão, seria a verdade também uma ilusão? “(...) a verdade é, como a palavra, um produto social, o que todos acreditam, e acreditando se entendem. O que é produto social é a mentira...” (p. 144). Pensando que “(...) tudo é fantasia e não há mais que a fantasia. O homem enquanto fala mente, e enquanto se fala a si mesmo, isto é, enquanto pensa sabendo que pensa, mente-se. Não há mais verdade que a vida fisiológica. (...) Não fazemos mais que mentir e nos dar importância. (...) Não fazemos senão representar cada qual o seu papel. Todos personas, todos caretas, todos comediantes! Ninguém sofre nem goza o que diz e expressa, e acaso acredita que goza e sofre; se não fosse assim não se poderia viver! No fundo estamos tão tranquilos. Como eu agora, aqui, ator e expectador, representando a sós minha comédia (...) A única verdade é o homem fisiológico, o que não fala, o que não mente...” (p. 144). Dessa forma, se estamos encenando uma peça, todos nós “gostamos de fazer teatro, e ninguém é o que é, mas sim o que fazem dele os outros...” (p. 163). Por isso Augusto sofreu tanto quando Eugenia o abandonou, pensando na sua vida social, pois sua vida fisiológica em nada foi abalada. Mas como o homem poderia se desvencilhar da sua vida social? Se sua realidade somente existe enquanto se relaciona, como viver apenas de acordo com sua fisiologia? Seguindo o exemplo de Orfeu? Orfeu é um se fisiológico, mas mantinha um relacionamento de amor legítimo com seu dono. Sem mentiras, sem convenções, sem palavras, somente sentimentos. É exatamente nesse sentido que Orfeu transmite seus pensamentos ao final do livre, criticando a falta de presença dos homens nesse mundo, a distração, a falta de presença nos momentos vividos, o homem “sempre parece estar em outra coisa que não a que está, e nem olha o que olha. É como se houvesse outro mundo para ele. E é claro, se há outro mundo, não há este.” (p. 250). Esse ponto me chamou muito a atenção, pois estamos sempre distraídos, vivemos no passado ou no futuro, mas dificilmente no presente. Enquanto que todos os outros animais ou qualquer outro ser não vive senão no presente, tem atenção ao que faz. Mesmo esse comentário, duvido que tenha realmente sido de Orfeu, pois, sendo um ser fisiológico, acho que ele não criticaria ou julgaria o homem, apenas continuaria a amá-lo, mas como o livro trouxe, não a nitidez, mas sim a névoa, tudo deve se confundir e isso é necessário, como aconselhou Victor à Augusto quando este disse estar chateado pelo abandono de sua noiva. O grande conselho de Victor é “devora-te”! Deixa-se corroer, deixa se confundir, isso é vida, a vida é névoa, quando a pessoa sente dor é daí que sabe que está viva. Penso que a palavra nivola talvez tenha alguma relação com a palavra névoa. Augusto investiu todos os seus esforços na conquista de Eugenia e depois de todo esse investimento no que achava ser sua vontade, seu desafio, suas forças, viu fracassar todo o seu eu. Quando fracassamos, o que é que sobra? Para Augusto, sobrava a morte, pois ele nunca tinha passado pela experiência da dor, toda a rejeição da noiva abriu-lhe a porta para um novo nascimento, e Augusto precisava aceitar o fato que tudo se confunde e que ele também era uma rã de experimento, mas da vida. Augusto não conseguiu aceitar o fracasso.

Somos projetados e ensinados para o sucesso, a ciência, a razão e quando sentimos as quedas, é o momento que lembramos que não somos deuses. Precisamos parar de discernir, definir e delinear. Para existirmos, é necessário a névoa. O desejo de suicídio de Augusto é como se fosse uma última possibilidade de ter o controle da situação. Ao mesmo tempo, ele se desespera, pois percebe que ele não tem um eu, ou, pelo menos, não possui um eu, controlado por ele. Será mesmo? O que criamos sai de nossos limites, nossos filhos não são controlados por nós (embora muitos pais o tentem), mas eles possuem vontades próprias, será que controlados pelo Criador? Ou também o Criador é um objeto de ficção, assim como Augusto sugere a Unamuno? A revolta com o criador é inerente ao conhecimento da própria morte. Augusto queria se matar até o momento que seu criador avisa que ele irá morrer. Desse momento em diante, Augusto implora pela própria vida, nesse momento ele sente que sua vida é importante, independente do que os outros façam dela, e sente que seu eu interior quer viver, independente do papel que lhe tenham dado para interpretar.

Quantas vezes desejamos algo sem pensar nas consequências do nosso desejo? É necessário ter cuidado com o que desejamos. Augusto mergulhou fundo na sua dor, desejou morrer, mas, na verdade, ele estava interpretando um papel, ele estava tranquilo e, quando recebeu a notícia que iria morrer, percebe a gravidade da situação e não a aceita. “- O mais libertador da arte é que faz alguém duvidar que exista. – E o que é existir? (...) Vê? Já te vai curando, já começa a te devorar.” (p. 224). Esse conselho de Victor a Augusto mostra que este já começava a amadurecer na vida, senti-a, vivia-a, tinha experiências para contar, indagava-se, coisas que não fazia ao “passear pela vida”. Foi só com toda essa experiência que Augusto sentiu que viver é também morrer e não aceitou essa condição, achou-se vítima, afinal de contas, que tipo de criador é esse, “(...) me criar para depois me deixar morrer!” (p. 235). Mas que será que lhe valia mais? Passear muito tempo pela vida sem vive-la ou viver intensamente seus amores, dores, lágrimas em um curto período de tempo? Sempre penso se um passarinho que fica em uma gaiola não trocaria uma vida inteira preso por um dia onde pudesse voar, mesmo que isso signifique ser morto em um dia. Eu mesma sempre pensei que melhor seria voar, mas, pensando em Augusto, receber a notícia da própria morte próxima, é natural e fisiológico que insistamos pela própria vida. Vivemos como se fôssemos eternos, não damos atenção ao aqui e nem ao agora, só prestamos atenção quando sabemos que nosso tempo é curto ou quando nosso criador para de nos sonhar. A Unamuno, deu-lhe vontade de matar Augusto, sem muitas razões predefinidas, e a vida é mesmo assim, as pessoas morrem das formas mais simples e banais possíveis, sem avisos, estamos sempre entre o ser e o não ser, o fora e o dentro, o real e a ficção. Só faz mesmo sentido em pensar que tudo se mistura, o sonho é realidade, a realidade é sonho, tudo se confunde, “as frases, quanto mais profundas, são mais vazias, não há profundidade maior que a de um poço sem fundo.” (p. 224).

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