Camila Dantas dos Santos Barros
Doutoranda, programa Neurociência
Névoa (Unamuno)
Minha primeira impressão do livro foi que teria bons momentos de reflexão com os monólogos da personagem principal, o Augusto. E realmente os tive, contudo não foi um livro que me cativou, que me deixou entusiasmada com os próximos eventos e passos das personagens. O Augusto me desapontou em muitos momentos. Como pode uma personagem tão “pensante” e perspicaz em seus momentos solitários, ter ações tão opostas no decorrer da história ? Muitas vezes parecendo uma criança mimada, com seus delírios infantis.
Durante todo o livro parece que realmente há uma névoa sobre as personagens que insiste em não se dissipar, todas as personagens parecem ambíguas, com sentimentos confusos e contradições. Parece haver algo que as encobre e nós, os leitores, não conseguimos muito bem definí-las, e muitas vezes ficamos apenas a supor as causas que justifiquem suas ações.
Nada mais enevoado que o amor de Augusto por Eugenia, tão efêmero e febril, que ele se deixa ser levado pela moça dos belos olhos e mãos frias. Mas no conduzir da história, percebemos que não é por amor e sim pelo simples poder da conquista, para não ser o outro e sim o “um”, como podemos observar no trecho: “'Já tenho um objetivo, uma finalidade nesta vida', se dizia, 'que é conquistar essa menina ou que ela me conquiste, o que dá no mesmo...”, diz Augusto referindo-se a Eugenia. Ele nem ao menos sabia se realmente estava apaixonado, mas parece querer estar e por isso se rende a Eugenia, em alguns trechos ele fica ofendido quando desconfiam do seu amor, como em sua conversa com Victor na página 92, que acha que ele possui um “enamoramento cerebral”. Porém poucas páginas depois, ele deixa claro que não sabe se realmente esta apaixonado, mostrando que talvez concorde com seu amigo, e acaba fazendo perguntas sobre o amor para seus empregados.
Ele possui uma musa em sua mente, alguém que talvez substitua a saudade que possui da sua mãe, porém ela se mostra totalmente diferente desde o início, mas ele não se importa: “Há apenas uma Eugenia, ou são duas, uma minha e outra de seu noivo? Pois se é assim, se há duas, que ele fique com a sua, que com a minha vou ficar eu”. Mas assim também é a própria pianista, que se diz tão enamorada por Mauricio, mas revela em alguns trechos que na verdade não é amor, e sim capricho e necessidade de estar no controle, “... Quanto mais depende de mim, mais meu!”, diz Eugenia a tia, referindo-se à Mauricio. E quando percebe que esta para perder Augusto, quer tê-lo de volta, apenas para sua satisfação pessoal, pela sedução, e para mantê-lo submisso. Tanto que no fim deixa Augusto, sem demonstrar qualquer ressentimento, mostrando que prevaleceu, como ultima palavra para todos os eventos do casamento, a sua palavra, o seu desejo de não se casar e de se manter no comando de suas relações e da sua própria vida. Mas apesar de algumas controversas de Eugenia, que parecia tão firme em sua ideologia de não se vender, de manter sua integridade e no final mostrar-se quase como uma vilã, esta foi a personagem mais intensa do livro e a que mais me fascinou, e não foi surpresa todo o desenrolar do final da história do casamento, pois desde o começo mostrou uma postura firme, caprichosa, estrategista e controladora, não se importando com o que os outros tem a dizer.
Em todo livro senti que essa névoa é uma espécie de sentimento, um “estado de espírito”, um vazio, que todas as personagens possuem. E o demonstram como um sentimento infantil de proteção, de querer “colo de mãe”, ou por não encarar as verdades de frente, e assim não levá-las tão a sério, para poder fazer o que querem sem ter que racionalizar e enfrentar as consequências destes atos. Isso ocorre desde o ato “heroico” da compra da hipoteca da casa de Eugenia por Augusto, que acabou virando-se contra ele, pois foi um ato impensado e precipitado; até mesmo com o casal que não quer mais ter filhos, porém estão “grávidos”; o pai que perdeu seu pequeno gênio e buscou a religião para amenizar sua dor, apesar de aparentemente não acreditar; o comunista teórico e místico, que não se define, pois só deixa suas afirmações no mundo das ideias sem colocá-las em prática, assim como Augusto; e até mesmo o pesquisador de mulheres que nunca se relacionou com elas e nem quer. São personagens interessantes, pois parecem muito maduros e firmes em seus propósitos, porém quando olhados mais a fundo, percebe-se que são imaturos, rasos, confusos e perdidos em suas próprias ideologias. Ironicamente, o único que parece realmente perceber a névoa que os encobre, não é humano e sim um cachorro, Orfeu, como podemos observar no capítulo pós morte do Augusto, seus pensamentos e sentimentos pelo seu dono e os outros a sua volta. E era também Orfeu o único com quem Augusto conseguia racionalizar e verbalizar sobre suas ações.
No livro também há a todo momento alguém dizendo “case-se”, como se isso fosse a solução para o dissipar desta névoa, que permeia o interior das personagens mesmo sem elas notarem, esse pedido vem como se dissessem “encontre-se”, pois essa é a única forma da névoa que os encobre acabar. Esse “se encontrar” no outro é perigoso, pois não pode-se ser par se não consegue-se ser ímpar. Mas como diz, muito bem, Augusto “Ai, Orfeu, Orfeu, isso de dormir só, só, só, de dormir um sonho só! O sonho de um só é a ilusão a aparência. O sonho de dois já é a verdade, a realidade. Que é o mundo real senão o sonho que sonhamos todos, o sonho comum ?”. O casamento em si não era a solução e sim o se encontrar, o se perceber e se permitir através do sonho, do amor do outro. É assim que se consegue sonhar e amar juntos, encontrando desta maneira a verdade de si próprio. Acredito que esse era o real desejo da mãe de Augusto, o de toda mãe na verdade, mesmo que eles não se dessem conta disso.
Essa busca pelo encontro de si mesmo, do auto-conhecimento me lembra muito o livro do ciclo anterior, A Historia sem fim. Existem muitos momentos de reflexão sobre o que de fato é real ou ficção, o poder da palavra para poder existir, entre outras semelhanças. Como pode ser observado nos trechos: “... me cegou ao me dar a vista...”, “... Tudo é fantasia e não há mais que fantasia. O homem enquanto fala mente, e enquanto se fala a si mesmo, isto é, enquanto pensa sabendo que pensa, mente-se. […] como a palavra, um produto social, o que todos acreditam, e acreditando se entendem. O que é produto social é a mentira...”, “A palavra foi feita para exagerar nossas sensações e expressões todas... talvez para acreditar nelas.”, entre outras .
O livro vai ganhando novas nuances perto de seu fim, Augusto parece começar a querer realmente respostas para suas perguntas, após a vergonha de ser publicamente rejeitado, ele parece querer realmente se encontrar. E em meio ao caos que sua vida se transformou, aparece-lhe a ideia de suicídio, e tentando encontrar respostas para esse sentimento de morte, acaba encontrando seu próprio criador. E esse, na minha opinião, é o melhor capítulo do livro, não somente pelas questões levantadas, Quem dirige quem ? Quem é realmente eterno ? O criador ou a criatura?, mas também porque naquela conversa, parece que há um leve dissipar de toda aquela névoa. Esse breve relance de clarificar aquela névoa, deixa Augusto de uma certa maneira desprotegido, pois a névoa, o não saber, é uma forma de proteção, enquanto o conhecimento, o descobrir traz consigo a verdade, que nem sempre lhe é agradável, e também o peso de sabê-la. E isso foge de sua razão, do seu mundo das idéias, pois naquele instante é real e não somente pensamento.
Esse sentimento de desamparo e descontrole sobre a própria vida o faz discutir com Unamuno, faz com que chegue em casa e queira comer, mas também o faz se sentir eterno, a morte já não é mais problema quando ele chega a sua casa, pois ele parece saber que ele será eterno, a criatura não o criador, tanto que ele faz com que o autor não o ressuscite, pois já não há tempo para isso, ele já se conforma com seu destino. Porém, esse breve momento de desanuviamento cessa rapidamente, pois até mesmo a morte de Augusto ocorre de maneira caricata e quase irreal, morreu “do coração”, porque tanto comeu. Sendo assim, podemos observar que até mesmo na morte a névoa esta presente, tornando turva e imprecisa a realidade.
A morte de Augusto, em minha opinião, foi precoce, porque foi no momento mais interessante do livro, o momento em que ele estava descobrindo a névoa em que estava e se encontrava mais próximo do seu “auto-conhecimento”, foi no momento em que parecia que enfim a névoa iria dar uma trégua à história, mas não, o autor decidiu por matar seu protagonista, por não saber o que fazer com ele, ou talvez, por vaidade, pois percebeu que sua criatura estava começando a ganhar consciência de seu próprio caminho e conduzindo sua história, talvez em breve fosse a criatura quem conduziria o criador e não mais o contrário.
“... é isso, nivola! Assim ninguém, terá o direito de dizer que anula as leis do gênero. Invento um gênero, e inventar um gênero não é mais que lhe dar um nome novo, e lhe dou as leis que me apraz. E muito diálogo!”. Esta “nivola” foi uma leitura simples, suave apesar dos momentos de reflexão, mas muitas vezes um pouco entediante e por isso, até agora, não sei qual é a minha posição sobre o livro, há algo que me incomodou em sua leitura, mas não soube identificar o que foi, contudo todas as reflexões que obtive através dele fez valer a pena tê-lo lido. Talvez meu incomodo seja porque ele traz mais questões do que soluções, já que as perguntas não são para serem respondidas e sim para a reflexão, ou pelo fato de querer me aprofundar mais nas personagens, porém elas parecem ter sido feitas para serem compreendidas na sutileza de sua superficialidade, e eu não consegui ser tão perspicaz para isso. Essa maneira pitoresca que as personagens do livro aparecem muitas vezes me fez sentir falta de algo mais intenso e nítido nelas, talvez de que alguma delas realmente soubesse de onde veio e, pelo menos que soubesse, para onde queria ir, nem mesmo Eugênia foi constante em seus objetivos. Nas discussões percebi que não era somente minha essa sensação diante as personagens, mas outras pessoas também sentiam estas personagens enevoadas e superficiais, mas talvez essa fosse a verdadeira intenção do livro, mantê-las imprecisas, assim como nós, encobertos sempre pela névoa, sem definição certa, podendo escolher qualquer direção, mesmo possuindo pensamentos críticos que parecem precisos mas opostos aos nossos atos, afinal “Os homens não sucumbidos às grandes dores nem às grandes alegrias, e é porque essas dores e essas alegrias vêm escondidas numa imensa névoa de pequenos incidentes. E a vida é isto, a névoa. A vida é nebulosa.”, assim como as personagens do livro, assim como todos nós.