O Apanhador no Campo de Centeio - História de Convivência por Karina Camasmie Abe
“Você já se sentiu alguma vez cheia de tudo? - perguntei. - Quer dizer, você alguma vez na vida já ficou com medo de que tudo vai dar errado, a menos que você faça alguma coisa?” (p. 54 – versão pdf)
Em um primeiro momento, Holden passou-me a impressão, de uma pessoa intragável, chata, deprimente, perdida e pessimista. Em uma primeira leitura superficial é fácil colocar essa descrição e taxá-lo. Na verdade, conhecendo-se qualquer pessoa, pela primeira vez e superficialmente, é fácil fazer a mesma coisa.
Em uma segunda leitura, agora enxergando o Holden, e refletindo sobre suas atitudes, olhando para o contexto ao seu redor, o seu pessimismo, comecei a gostar dele. Na verdade, comecei a gostar muito, “fora de brincadeira”. Essa mudança em meu “olhar” me chamou muito a atenção, pois, em um primeiro momento, o que não nos agrada, tentamos ignorar. Porém, quando esse algo não é ignorável, há duas saídas: sentir raiva e ódio ou conhecê-lo. Normalmente, quando nos esforçamos para conhecer alguém ou alguma coisa, nos colocando no lugar dessa pessoa, escutando seus argumentos e história de vida, mesmo que não concordemos com suas atitudes, acabamos por compreendê-la e isso muda tudo. Afinal de contas, somente conseguimos aprender algo quando há troca, quando há um relacionamento. Quando não nos relacionamos com algo, não o enxergamos, logo, não pensamos ou refletimos sobre ele. Não se pensa sobre o que se ignora.
Nesse sentido, o Holden está o tempo inteiro tentando se relacionar com as pessoas, que estão surdas ao seu apelo, ele sente que algo está muito errado naquela sociedade, ele tenta expressar essa ideia, não muito bem, afinal de contas é sempre difícil encontrar as palavras certas. Ele até menciona o colega de escola que tinha um ótimo vocabulário, colega que ele marca um encontro. Holden tenta buscar essas “palavras certas”, no entanto, o rapaz não estava com a mínima vontade de conversar com ele.
“Escuta aqui, Luce. Você é um desses caras intelectuais. Preciso de seu conselho. Estou numa atrapalhada...
- Escute, Caulfield - ele falou, e parecia mais um gemido. - Se você quer se sentar aqui para uns drinques quieto e tranqüilo, e uma conversa quieta e tran...
- Está bem. Está bem - falei. - Calminha.
Estava na cara que ele não queria discutir nada sério comigo.”
Mesmo sua família não conversava sobre a morte de seu irmão, o que causa uma dor que o acompanha o livro inteiro. A angústia, a falta de sentido que ele vê nas coisas que precisa fazer, a falta de amigos, a distância da família. Ele almeja uma vida nova, simbolizada pela fuga para o oeste, começar algo novo, pessoas novas, sair da escola, fugir da necessidade de se tornar alguém para aquela sociedade superficial. Até o símbolo de seu colégio lhe desagrada, era um garoto jogando pólo, quando nunca foi visto nenhum garoto jogando pólo, nem cavalos por lá.
“Eles fazem propaganda em mais de mil revistas, mostrando sempre um sujeito bacana, a cavalo, saltando uma cerca. Parece até que lá no Pencey a gente passava o tempo todo jogando pólo. Pois nunca vi um cavalo por lá, nem mesmo para amostra. E, embaixo do desenho do sujeito a cavalo, vem sempre escrito: "Desde 1888 transformamos meninos em rapazes esplêndidos e atilados". Pura conversa fiada. Não transformam ninguém mais do que qualquer outro colégio. E não vi ninguém por lá que fosse esplêndido e atilado. Talvez dois sujeitos, se tanto. E esses, com certeza, já chegaram lá assim.” (p.2)
Essa busca por sentido é vivida por todos nós, quanto mais nos aprofundamos na realidade que nos cerca, mais olhamos ao nosso redor e vemos coisas que não condizem com o que queremos. Mas também há muitas coisas que condizem e muitas outras que podemos aprender. Nesse sentido, viver sem se questionar, viver “automaticamente”, realizando as tarefas, é mais “fácil”, no entanto, viver e tentar enxergar o que se vive, se questionar, tentar mudar algo ou mudar-se é mais difícil, não é tão “fácil”, no entanto, penso que é necessário viver tendo consciência de que vive, mesmo que você não possa mudar de imediato sua realidade, como acontece com o Holden. Mas refletir é uma parte fundamental para conseguir ir em frente, senão, parece sempre que estamos a rodar como no carrossel, voltando sempre nas mesmas situações. É importante tentar agarrar alguma argola dourada, mesmo que você não a alcance, mas não tentar é o pior que pode ocorrer.
Contudo, aos que refletem ou não refletem sobre o que vivem, penso que o sofrimento é inevitável, pois todos estamos em queda. Só é possível se erguer aquele que cai.
“Esta queda para a qual você está caminhando é um tipo especial de queda, um tipo horrível. O homem que cai não consegue nem mesmo ouvir ou sentir o baque do seu corpo no fundo. Apenas cai e cai. A coisa toda se aplica aos homens que, num momento ou outro de suas vidas, procuram alguma coisa que seu próprio meio não lhes podia proporcionar. Ou que pensavam que seu próprio meio não lhes poderia proporcionar. Por isso, abandonam a busca. Abandonam a busca antes mesmo de começá-la de verdade. ...vejo você, com toda a clareza, morrendo nobremente, de uma forma ou de outra por uma causa qualquer absolutamente indigna.” (p.78)
Comecei a ficar até com compaixão pelo Holden, pois percebi que, no fundo, ele somente clama por amor e atenção. Quanto mais ácido e amargo ele ia ficando, mais sozinhos e mais deprimidos nós também nos sentíamos, talvez por isso que ele não agrade numa primeira leitura, pois quem gosta de se sentir assim?
Ele deseja ardentemente alguém que o escute de verdade, que converse com ele. A única pessoa que faz isso é a sua irmã Phoebe, eles sentem um grande amor um pelo outro e, nesse relacionamento, eles compartilham seus sofrimentos, suas alegrias, suas conversas, seu apoio, suas dores, suas angústias. Essa troca entre eles é muito delicada e bela, é um cuidar acima de tudo. Esse é o único momento que o Holden sente-se feliz e em paz, ao ver sua irmã no carrossel, depois de toda dor, sofrimento, medo e insegurança que ele havia passado, na verdade ele somente quer poder voltar para casa. Ele passa esses dois dias tentando isso, ele quer ser acolhido pelos pais e cuidado, quer ficar com a irmã. Ele sente tanto a falta disso e sente tanto a falta do irmão, uma vez que não pôde viver esse luto, que ele deseja, acima de tudo, ser o apanhador no campo de centeio.
“Chovia por todo lado. O pessoal todo que estava de visita saiu correndo para os carros. Foi isso que me deixou doido. Todo mundo podia correr para dentro dos carros, ligar o rádio e tudo e ir jantar em algum lugar bacana - todo mundo menos o Allie. Não agüento um troço desses. Eu sei que é só o corpo dele e tudo que está no cemitério, que a alma está no céu e essa merda toda, mas assim mesmo não podia aguentar aquilo. Só queria que ele não estivesse lá.”
Como discutido, ele quer ser o apanhador mesmo, quer pegar o outro pelo braço e tirá-lo dali, levar para um lugar que julgue seguro. Nas conversas com as pessoas ele também transparece esse seu jeito, ele quer que a pessoa veja que tem algo errado, como se quisesse “agarrar” e mudar o ponto de vista, chegando a ficar nervoso ou contrariado quando a pessoa não concorda com ele. Os pais dele também agarram-no e o colocam numa escola que julgam ser boa para ele. Todos precisam aprender a se encontrar e encontrar o outro, como diz a música, uma vez que no encontro não há certeza de que algo vai mudar, quando se agarra algo, sim, há certeza, pelo bem, ou pelo mal, que algo será desviado de seu percurso. E quantas vezes nós não tentamos ser o apanhador?
“Milhares de garotinhos, e ninguém por perto - quer dizer, ninguém grande - a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo.”
Quando vemos algo que não julgamos estar certo, podemos, ou ignorar (quando ocorre com quem não nos relacionamos) ou tentamos agarrar, ou nos encontrar. O problema é que quando conhecemos e gostamos da pessoa, tentamos “agarrar”, fazer por ela, como se pudéssemos e tivéssemos o direito de fazer isso, mas, na verdade, um encontro é o que poderia haver de mais valioso entre nós, pena que nem estamos acostumados a isso. A incerteza de algo é perturbadora quando se pretende controlar as coisas. Por isso esse livro me abriu muito a percepção de como estamos tão desatentos e alheios ao encontro. Muitas pessoas pedem ajuda todos os dias sutilmente, querendo conversar sobre algo, pois o diálogo desoprimi e alivia a angústia, mesmo que o outro não esteja entendendo, falar do que você está vivendo ou algo que lhe preocupa, modifica seus sentimentos a respeito daquilo. Em grandes cidades, já é comum não querer o relacionamento com quem não se conhece, mas estamos alheios até às pessoas que gostamos e conhecemos. Estamos cada vez mais deixando de lado o diálogo, a conversa, o encontro. Como diz o Holden, é importante falar sobre o que se viveu, pois você acaba não tendo ódio de ninguém, na verdade, perdoa-se a todos, sente-se “uma espécie de saudade de todo mundo que entra na estória” e isso é libertador.