Dostoiévski escreve e descreve a condição humana através dos personagens protagonistas de Os Irmãos Karamazov.
Nesta narrativa ímpar, tece enlaces de uma história alocada no século XIX com total pertencimento ao XXI.
O tempo, irrelevante. Não há elementos da modernidade ou pós-modernidade que desempenham papel essencial no texto. Nesse tecido encontra-se a descrição do humano bom, mau, ardiloso, feroz, fracassado, perverso, manipulador, dentre tantas possibilidades. Mas o mais importante: vincula-os através de universais éticos, religiosos e morais, inseridos no zeitgeist. O emaranhado empresta – sem dó – os arquétipos humanos, construindo um texto primoroso, temperado por emoções, suspense, história, política e... relações humanas.
Por isso o pertencimento à atualidade é genial.
Dostoiévski usa-se. É a partir da sua própria condição transgressora e atormentada que edifica personas inseridas em seu próprio território psicológico. E quantos não serão os “Mítias”, “Ivãs”, “Grúchenhkas”, “Fiódors” e “Aliochas” que não estão pelos escombros da nossa existência?
E não os interpreta. Permite a fruição (gozo) natural. Nem tampouco, julga: apresenta cada um deles numa narrativa, acima de tudo honesta. E não seria diferente quando usa parte da sua biografia para tal.
E reforçando, cada personagem descreve uma dessas instituições: o bem, o mal, o generoso, o perverso, o poder, etc.
Não há como não apaixonar-se por Grúchenhka, mulher de talentos diversos e obscuros, emocionalmente intensa e decidida. Mas pragmática demais. Seus objetivos pessoais determinam ações e sentimentos por vezes incompreensíveis, antes que o fragmento no texto que a revela seja alcançado. De credibilidade discutível – seu amor brota. Mas fica a sensação que ela ama o Amor. Como num thriller, elemento esse, inserido no livro de forma a produzir no leitor – pelo menos em visão particular – grande angústia.
Impossível não identificar-se com Mítia, na medida em que trafega por diferentes universos sociais e mantêm-se psicologicamente organizado, não perdendo jamais o eixo.
Fiódor, pai que ama e odeia ao mesmo tempo, não tem pudores. Não passa vontade. Goza escandalosamente. E quando morre, liberta muitos e encarcera outros.
Aliócha – o bom e o bem – fraterniza-nos, se for possível tal conjugação. Não no léxico, mas no existencial.
O livro não me transformou: me emocionou. No imaginário, uma paranoia benigna: se tivesse conhecido Dostoiévski, teríamos compartilhado diversas experiências em comum. Em especial as assombradas. Encontraríamo-nos num parque de diversões mambembe – que não para quieto em nenhum lugar - cujos atendentes seriam duendes, magos, fadas, gnomos, leprechauns e outros personagens fantásticos. Talvez até o Rei Arthur. Ou quem sabe, a Dercy Gonçalves.
Que a metáfora escatológica não comprometa este fragmento.