Livro Ressurreição, de Liev Tolstói: a verdadeira Bíblia da humanidade
Após uma palestra que vi na UNIFESP, ministrada pelo professor Dante Gallian, no Simpósio de Fonoaudiologia, resolvi conhecer o Laboratório de Humanidades, ou LabHum. O que despertou em mim essa curiosidade e me deixou bastante intrigada foi o fato de haver discussões literárias, de livros indicados pelos responsáveis pelo laboratório, Yuri Bittar e Dante Gallian. O grupo é, realmente, inovador para o nosso campus, que agrupa cursos universitários da “área de biológicas”, ou “área de saúde”. Cursos excelentes em pesquisa e prática clínica e reconhecidos pelo Brasil. Entretanto, acho que o LabHum trouxe para o campus São Paulo da UNIFESP algo que ainda faltava: a “área de humanas”.
Tendemos a dividir nossos cursos em áreas e nossas atuações em especialidades. Claro, isso norteia muitos quando irão seguir uma carreira pelas suas preferências. Mas, como falar em biologia e em saúde, como falar sobre seres humanos, como falar em atender pessoas quando excluímos a “área de humanas”? Área, esta, que irá falar sobre o nosso contexto histórico, político e social. Área, esta, que irá nos exigir argumentar, refletir, observar em detalhes. Seja você um cientista, um médico, um fonoaudiólogo, um enfermeiro, um psicólogo, etc, você estará o tempo todo necessitando argumentar, refletir e observar (a si mesmo e o seu paciente). Para mim, é impossível lidar com pessoas quando não se tem interesse em discutir vivências, ou quando não nos interessamos em saber a respeito das ações humanas. Seria impossível lidar com pessoas sem haver reflexões diárias sobre a nossa sociedade. E mais impossível ainda seria estar em um ambiente hospitalar público, como o que estamos na UNIFESP, sem termos uma consciência política e social. E o que gera a consciência política e social?
São diversos fatores, dentre eles, os que envolvem a experiência emocional, social e psicológica de um indivíduo. E essa experiência envolve também a leitura. Sem deixar de citar, é possível que um único livro transforme alguém e que 100 outros livros não o transforme tanto quanto aquele.
Mas, de verdade, não é o livro, em si, que nos transforma. Esquecemo-nos, muitas vezes, de algo extremamente simples. As coisas, os objetos, os papéis só estão lá pela existência de pessoas. Sendo assim, quem nos transforma somos nós mesmos, os seres humanos. Por trás de todo livro, há alguém que o escreveu e outra pessoa que o leu; atrás de todo o discurso, falado ou redigido, há alguém que o pronunciou/escreveu e alguém que o escutou/leu; e atrás de toda a experiência pessoal e histórica, há pessoas que a viveram. Isso é comunicação. E, por empatia, o ser humano quer se socializar, quer se comunicar. Por isso, achei tão importante esse grupo, um grupo que tem participação de pessoas de diversas áreas, conhecimentos, ideias e ideais, vindos de outros campus ou do mesmo campus, discutindo e refletindo sobre o que foi lido, partilhando experiências e conhecimentos. Comunicando.
Tentei acompanhar o grupo na leitura do livro “Ressurreição” de acordo com nossos encontros de reflexão e consegui terminá-lo a tempo. E foi uma experiência maravilhosa! Quanto mais folheava o livro, mais queria ler o que um autor do século XIX pensou e que pouca gente parou para pensar no século XXI. Posso dizer que, sim, foi um dos livros, foi um dos autores que me transformou. Tolstói foi um autor que conseguiu, mesmo sendo de século tão anterior, falar através da eternidade. Tem um discurso atemporal, pois traz conceitos humanos e universais, muito melhores do que a própria Bíblia (que é, por vezes, machista em suas escrituras). Ainda que Tolstói cite trechos bíblicos, ele faz isso só em poucas páginas e mais ao final do livro. E foi muito criticado pela igreja católica ortodoxa, pois trouxe um conceito social e humano muito forte nesse livro, o qual a igreja sempre foi contra, além de, durante toda a sua história religiosa, ter agido de maneira preconceituosa, totalitária e repressora. O que é uma lástima, já que a igreja deveria trazer os conceitos que Jesus trouxe, que estão escritos no próprio livro que ela cultua.
É absurdo vermos tantos católicos ou evangélicos disseminando conceitos tão opostos ao “autor” Jesus, aquele que as instituições religiosas dizem tanto defender. Se Jesus fosse vivo hoje, talvez estivesse sendo rechaçado por essas mesmas instituições, ao declamar “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me”. Com certeza, Jesus, ao pronunciar tal discurso, estaria ouvindo da população de hoje, da “Era do Ódio”, as seguintes falas: “comunista, vai pra Cuba”. E, provavelmente, teria sido perseguido e morto, tão igual quanto foi na história citada pela Bíblia.
Os anos passaram, mas o pensamento dos ditos “seres humanos” permaneceu estático, institucionalizado, retrógrado e intolerante. A igreja, os templos, sejam eles de quais forem a religião, continuam lucrando e tirando do povo o que deles é direito.
Em “Ressurreição”, até mesmo aquele que construiu a capa do livro me transformou. Olhando para esta edição, de 2010, com a tradução de Rubens Figueiredo, podemos perceber que, na capa, há duas imagens que, em um primeiro momento, parecem idênticas, quase um reflexo uma da outra. A impressão é exatamente essa, a de que uma imagem está refletida em um espelho d’água. Mas, olhando atentamente, virando o livro para o lado inverso, podemos perceber que, em uma imagem há algumas pessoas e, na outra, faltam algumas dessas pessoas. E acho que uma “ressurreição”, como o próprio título do livro, já começa por aí: quando não confundimos o real com a aparência do real.
Ressurreição é se transformar, é enxergar o real. Você pode ressurgir purificado, como na água, como em um rio. E, como disse Heráclito, “ninguém entra em um mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas já serão outras”. Por isso, percebo que, até mesmo na imagem da capa desse livro, sentimos essa ressurreição quando descobrimos que as duas figuras, ainda que sejam um reflexo da outra, não são as mesmas; quando observamos os detalhes e tentamos reorganizá-los e reinterpretá-los. Simbolicamente, essa imagem traduziu em mim uma ressurreição.
Quanto à história levantada, penso que há inúmeras reflexões a serem pontuadas. Desde o enredo, até os personagens e a forma como eles também se transformam e ressurgem. Tolstói conseguiu fazer com que todos os personagens tivessem uma importância e em todos eles conseguimos nos ver, ver o reflexo de nós mesmos (como em um espelho d’água).
Como comentado anteriormente, o autor ressalta questões de séculos passados que perduram até hoje, infelizmente. Máslova é uma personagem importante que traduz a dificuldade em ser mulher vivendo em uma sociedade patriarcal. Ela nos deixa claro que o respeito pela mulher ainda não foi atingido, nem mesmo nos dias atuais. Ainda somos julgadas pela nossa aparência física, pelo modo como nos vestimos e só deixamos de ser assediadas (física ou verbalmente) nas ruas quando estamos acompanhadas por um parceiro homem, como se precisássemos ter um dono, sermos posse de alguém, para sermos respeitadas. Por isso o termo “objetificação da mulher” é tão utilizado por sociólogos e sociólogas, filósofas e filósofos, etc. Ainda hoje, diversas mulheres sofrem violência doméstica, inúmeras sofrem abusos físicos ou verbais, nas ruas, em transportes públicos ou dentro de suas próprias casas. Leis foram criadas para proteção da mulher, mas, bem de longe, estão sendo aplicadas como deveriam. Mulheres têm medo de denunciar, pois sentem-se desprotegidas. O maior medo de uma mulher é sofrer um estupro. Mas muitas de nós, se não fomos estupradas fisicamente, fomos estupradas verbalmente. A sociedade faz isso conosco continuamente, quando mantém conceitos machistas.
Muitas mulheres dizem ser “contra o feminismo”. Ora, é impossível ser “contra o feminismo” ou “ser machista” quando se é mulher. Pensando-se que a mulher é a oprimida na história, é impossível que a oprimida seja ao mesmo tempo a opressora. É impossível ser mulher sem lutar por si mesma. No momento em que nascemos mulher, já estamos dentro da luta pela nossa igualdade. Lutando por si mesmas, já estamos lutando por todas nós.
O discurso de “ser contra o feminismo” divulgado por algumas mulheres me fez lembrar o dos camponeses da história de Tolstói quando recusam as terras que ele quer “devolver” a eles, com medo de que fossem ser prejudicados por isso. Muitas mulheres pensam que serão prejudicadas pelo feminismo. Após serem tão reprimidas pela sociedade machista, chegam a acreditar e conformar-se em sua desigualdade, a ponto de negarem seus próprios direitos básicos quando estes lhe são nomeados, oferecidos. Temos aí a chamada “síndrome de Estocolmo”, quando a vítima, após tanto tempo repreendida, acaba acreditando que “ama” o seu agressor.
A personagem Máslova, após tantos anos sendo abusada e deixada de lado pelo sistema, resolve ir para uma vida “fácil”, que de fácil nada tem. As prostitutas são vistas, até hoje, como imorais e vergonhosas. No entanto, a imoralidade não vem, de fato, delas, mas, sim, dos homens que as procuram quando já são casados ou dos homens que pensam ter o direito de espancá-las e fazer com elas o que bem entenderem. Para eles, as prostitutas são objetos.
Com o livro, veio também mais uma reflexão: será que só as prostitutas se prostituem?
Quantas vezes pessoas fazem coisas imorais e vergonhosas por um cargo, por status, por grande quantia em dinheiro? Sendo assim, políticos se prostituem, juízes se prostituem, militares se prostituem. Pois, na verdade, o real significado de “prostituir-se” é se deixar corromper, degradar, desmoralizar. Então, se formos pensar bem, nessa história toda, a prostituta do bordel é a que menos se prostitui. Talvez, por isso, Jesus aceitou Maria Madalena, enquanto tantos outros queriam apedrejá-la.
Todos os dias milhares de pessoas estão se prostituindo pelo mundo por culpa de um sistema que as oprime, por culpa de um sistema institucionalizado que não as deixa ser livres, obrigando-as a usarem máscaras. Um sistema que não as deixa produzir com criatividade, mas, sim, com supervisão impositiva às vontades da elite, que cobra horas de trabalho subhumanas. O “work a holic” é vangloriado, o homem que resolveu viver uma vida simples é desvalozarido, ridicularizado, é visto, até mesmo, com certa pena pela maioria. Vivemos em um sistema causador de todos os nossos medos, carências, depressões e ansiedades.
Quanto à Dmítri, personagem do livro, há, sim, nele uma culpa. Por isso, penso que ele decide ajudar Máslova no intuito de se livrar da culpa. Quantas vezes não decidimos optar pelo lado bom porque nos sentimos culpados por algo? Entretanto, ainda que tenha sido por isso, ainda que não tenha sido uma causa nobre de ajudar sem pensar em seu próprio benefício, Dmítri acaba percebendo, de uma forma ou de outra, que fazer o bem é bom, não apenas porque lhe tira uma culpa, mas também porque se sente bem, sente-se parte da natureza, das raízes do nosso mundo. O homem tem em sua natureza a empatia, e tem, sim, em sua natureza, a necessidade de ajudar o outro.
E, então, Dmítri decide ajudar pessoas das mais diversas e oprimidas pelo sistema, que não lhe trariam nenhum benefício material ou de status. E ele começa seu processo de ressurreição aí, passa a odiar o sistema opressor e as pessoas que o sustentavam com seus preconceitos, com suas imposições e corrupções.
Outro ponto que gostei muito do livro é quando ele cita que não há pessoas 100% boas e nem 100% más. Portanto, está errado classificá-las dessa maneira. Está errado rotular pessoas. Pois somos diferentes a cada dia, nosso humor muda conforme as nossas vivências e é possível termos diversas personalidades e comportamentos e, ao mesmo tempo, sermos a mesma pessoa. Da mesma maneira, é possível mudarmos completamente em relação ao que éramos anteriormente. Cientistas, por muito tempo, defenderam e nos fizeram acreditar, por consequência, na ideia de que há pessoas que são más por natureza. Ao contrário. Ninguém age de maneira maldosa porque seja algo geneticamente programado. E a questão determinista genética caiu por terra, a qual já chegou a dizer que o formato do crânio determinaria se alguém é um assassino ou não. Infelizmente, ainda tem gente que acredita nessa ideia totalmente absurda.
Assim como a igreja e as religiões, a ciência também já cometeu muitos erros. Por esta razão, mais uma vez, ressalto: a ciência e a biologia devem falar em conjunto com a visão social. Não há como separar biológico de social quando se trata do ser humano! Seria, no mínimo, uma antítese falar só de Darwinismo quando se quer descrever um ser que vive em uma sociedade plural, de diversas culturas e que não vive mais no seu meio natural, mas, sim, em cidades, com tecnologias e trabalhos que não são mais “braçais”, mas que envolvem a mente e o pensamento humano. É por isso que tantos cientistas já vêm discutindo, inclusive, que não somos mais da espécie homo sapiens, mas, sim, da espécie homo technicus.
Pesquisadores já nos demonstraram que a criminalidade surge da experiência vivida. O comportamento humano natural de um bebê quando chora é se acalmar ao ficar perto de sua mãe. Inúmeros documentários e artigos nos mostram que, na própria natureza, encontramos diversas espécies de animais que trabalham juntas. O ser humano é uma dessas espécies e jamais conseguiria viver individualmente. Hoje sabemos que somos sociais por nossa própria natureza.
E é por isso que o personagem Dmítri ou qualquer outra pessoa sentiria-se muito bem “fazendo o bem sem olhar a quem”. Mas até chegarmos nesse patamar de ajudar a todos vai demorar. Nem todos pensam assim. A maioria ainda pensa de uma maneira individualista. E nem é culpa dessas pessoas. Mas, sim, de um sistema que nos fez acreditar nisso. Fez-nos acreditar que, no máximo, devemos ajudar nossos parentes, pois são da nossa família.
No passado, alguém surgiu e definiu que família era “pai, mãe e filho” e que tudo o que saísse desse conceito seria imoral. Isso é absurdo, pois, de verdade, somos todos da mesma espécie, sendo assim, de uma mesma família.
Se formos falar em família tradicional brasileira, devemos dizer, então, que essa classificação seria aquela baseada na dos indígenas, já que eles foram os nativos do Brasil, os que estavam aqui muito antes de termos existido, muito antes de sermos colonizados, muitos antes de o homem branco ter roubado suas terras e jamais terem-nas devolvido a eles. A partir de um documento criado pelas mãos do próprio homem branco, a terra foi tirada de seus verdadeiros proprietários e foi dada ao homem branco.
E é por isso que, até hoje, após mais de 500 anos, ainda existe tanta briga por terras tiradas de pessoas que acabaram sendo marginalizadas. Quando Tolstói cita no livro sobre os camponeses e a terra eu pensei nisso. A terra cultivada pelos camponeses, a terra que eles aravam e cuidavam deveria ser deles, mas o burguês disse que não pertencia a eles, mas, sim, à elite, que nunca fez nada pela terra e sempre usufruiu de seus produtos, extraídos e produzidos pelos trabalhadores, escravos do sistema.
Tolstói fala nesse livro sobre as ideias de defensores da universalização da terra. De fato, a terra é de todos e não de uma única pessoa, já que a terra é da natureza. E é na natureza que o homem tira a sua sobrevivência. Sendo assim, a terra deveria ser de todos, o que não acontece. Ela vira uma propriedade e, com isso, dá poder a alguns e oprime outros. A pior coisa que criaram foi o conceito de uma única “classe” deter a propriedade da terra. Foi o que causou as desigualdades que enfrentamos até hoje.
Hoje há uma minoria ganhando bilhões e uma maioria na miséria. Há milhares de pessoas extraindo cacau embaixo de sol por horas ganhando 1 real por dia, enquanto outras milhares de pessoas comem o chocolate desse cacau oriundo de trabalho escravo. Jogamos comida fora enquanto uma maioria morre de fome. Indústrias lucram a partir da “queima” do excesso de seus produtos, ao invés de doarem o que sobra. É absurdo atrás de absurdo e nada mudou. O capitalismo é um fascismo fantasiado com roupas coloridas, que nos faz acreditar que o sistema é ótimo, enquanto a pobreza e a fome não baterem em nossas próprias portas. Lá fora, no frio, nas ruas, há milhares de crianças pedindo esmolas, sendo abusadas, violentadas, enquanto uma criança chora e esperneia, em seu quarto, quentinha e protegida, porque os seus pais não lhe deram o tablet que queria, como presente de Dia das Crianças.
Não sabemos qual sistema é o melhor, mas já sabemos qual sistema não é. O capitalismo não é ideal, porque tem como prioridade a desigualdade e sempre será assim. No momento em que houver igualdade ninguém estará lucrando. E se ninguém lucra, não existe capitalismo. Ele é um sistema que tem como base o lucro. Por isso, há o desperdício de produtos, a poluição e destruição do nosso meio ambiente. Em si, o capitalismo nada tem de ecológico.
Ontem, 21 de outubro de 2015, assisti ao filme “De volta para o futuro II”. No filme, os personagens vão para o futuro, em 2015, na exata data de ontem. Ao chegarem em 21 de outubro de 2015, há uma cidade repleta por tecnologias e sistemas sustentáveis. Ontem eu assisti ao filme e percebi o quanto já temos capacidade para implementar todas as tecnologias destacadas no filme. Mas não implementamos nenhuma delas no nosso cotidiano. Isso porque a “máfia das grandes indústrias” não querem ser passadas para trás, o que as levaria à falência. Por isso, essas indústrias e grandes empresas impedem a inserção de novas indústrias e tecnologias sustentáveis no mercado. E assim vivemos. Entretanto, sabemos que, se o sistema não mudar, ele será o responsável, um dia, pela extinção dele próprio e da nossa espécie, por tabela. O mais engraçado é ver paulistanos tão indignados com as ciclovias, enquanto países europeus elogiaram essa implementação e, muitos, fazem o mesmo. O Brasil jamais deveria ter optado pelo sistema rodoviário, visto que é um país gigantesco com inúmeros rios. O sistema aquaviário e ferroviário seriam muito mais rentáveis para nós. Mas o país decidiu se submeter à imposição das grandes empresas e vender suas matérias-primas, sendo muito mais lucrativo ao sistema que nos foi imposto por essas mesmas indústrias, as quais divulgaram para nós a falsa ideia de que “ter carros era inovador, era uma evolução tecnológica!”. Hoje pessoas que moram ao lado do metrô vão de carro para o trabalho e reclamam do trânsito caótico da cidade.
O livro, com certeza, também nos leva a pensar e repensar sobre o nosso sistema judiciário e carcerário, que marginaliza quem tem menos dinheiro e salva da criminalidade o milionário. O sistema carcerário do nosso país, não apenas do país, mas o do nosso mundo de longe é o ideal, pois, ao invés de aproveitar e educar o presidiário, dá punições a ele, “gradua” e “pós-gradua” as pessoas em criminalidade. O sistema carcerário oprime, tortura os presidiários física e psicologicamente. Isso sem contar nos sistemas que são a favor da prisão perpétua ou da pena de morte. Óbvio que quem é morto nunca é o rico. Qual não deveria ser a nossa surpresa quando os jornais e a mídia como um todo nos passa conceitos como “criminoso tem que morrer”, “olho por olho, dente por dente”?
Quem são os criminosos para a população que acredita nesses conceitos babilônicos, da antiguidade? O criminoso para elas é a vítima do sistema, ou seja, o pobre, o favelado, o negro. O preconceito é disseminado pela mídia, que faz seu desserviço, bancado pelos detentores do poder do capital, como os grandes bancos, as famílias burguesas que atravessaram séculos sobrevivendo e oprimindo os menos favorecidos. Dessa maneira, os donos das grandes empresas, os donos dos bancos centrais mundiais, são até mais criminosos e - por que não seriam? - os únicos criminosos, já que um mero ladrão de galinhas roubou porque passava fome, porque ele não têm o mesmo dinheiro que um bilionário do dono de uma multinacional tem. Além de essas empresas sonegarem impostos, quando não há outros que fazem lavagem de dinheiro para o não pagamento desses impostos.
Poucos têm a mesma ressurreição que Dmítri, que nos leva à pergunta “por que um filho de um empresário bilionário que atropela e mata alguém não vai preso, enquanto foi julgado e preso o pobre que roubou comida porque passava fome?”. Poucos se perguntam “por que alguém que queimou vivo um índio está solto?” ou “por que o policial que baleou e matou um inocente e uma pessoa honesta que morava na favela está impune ao seu crime?”.
Como diria um provérbio chinês “Quando o sábio aponta para as estrelas, o idiota olha para o dedo”. Quando pessoas trazem à tona esses questionamentos, muitos não as levam em consideração. É o que a maior parte das pessoas faz. Como eu disse uma vez, não fazem isso porque têm culpa, mas porque também são tão vítimas quanto os próprios presidiários. Na história do livro, é citado que “os presos estão, de fato, livres”, pois estão excluídos do sistema. Diferentemente das pessoas que estão soltas. Elas são oprimidas pelo sistema que as faz acreditar que há “terroristas” por aí. E todos os que foram contra o sistema serão classificados como “terroristas”, “ladrões”, “marginais”.
Hoje, enquanto um professor de uma escola pública, aquele que é formador de conhecimento, ganha menos de 2 mil por mês, um deputado que diz que “homossexualidade é uma doença” e que “mulheres devem ganhar menos porque engravidam” ganha mais 140 mil por mês. Tudo a serviço dos reais detentores do capital e do poder. Nosso sistema de “organização” serve para manter os interesses da elite e, quem vai contra isso, é preso, torturado, taxado como “terrorista”. Para isso, fazem a cabeça do povo, utilizando-se da mídia.
O personagem Dmítri começa, então, a entender conceitos ditos como “de esquerda”, divulgados pelos presos políticos, citados no livro de Tolstói. Ainda que o livro não deixe isso registrado ou nomeado como “de esquerda”, o fato é que é este o conceito que ele nos passa. Mas o que seria ser “de esquerda” e “não ser de esquerda”? Um dia, o filósofo Deleuze disse o que ele pensava sobre isso, então, deixo aqui a citação dele: “Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, costuma-se pensar em como fazer para que esta situação perdure”. Já “ser de esquerda”, para ele, seria o contrário. “É perceber… É um fenômeno de percepção. Primeiro, vê-se o horizonte e sabe-se que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não pode mais durar. Não é possível esta injustiça absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção”.
Esses e outros conceitos estão dentro desse livro fantástico “Ressurreição”, de Tolstói. Um livro único e universal. Ele, sim, deveria ser a nossa Bíblia.
São Paulo, 22 de outubro de 2015.