MORTE DE IVAN ILITCH – Lev Tolstói
por Vera Anita Bifulco
“A morte de Ivan Ilitch” é justamente um livro sobre como podemos desperdiçar nossas vidas. Uma vida com propósito é aquela em que sou autor da minha própria vida. Eu não sou alguém que simplesmente vou vivendo.
Nós, todos nós somos mortais, por mais óbvio que possa parecer essa afirmação há pessoas que vivem como se fossem imortais, eternos, como se tivessem todo o tempo da eternidade e da sua própria história para evitar uma vida que fosse menos vazia, banal, superficial.
Primeira vez que participo do Labhum e justamente neste trimestre, sou presenteada com duas obras magistrais.
A morte de Ivan Ilitch foi-me uma experiência de leitura amorosa, de profundo afeto, melancolia e gratidão por um tempo vivido intensamente de conhecimento e experiências acontecendo simultaneamente (Ambulatório de Cuidados Paliativos dentro da Clínica Médica, anos 2002 a 2006), nem nos dávamos conta, nós da equipe multiprofissional, que isso seria significativo para o resto de nossas vidas pessoais e profissionais e nos transformaria como seres humanos em nossas práticas cotidianas.
Um livro atemporal. O medo da morte, que invade o paciente (Ivan Ilitch), o faz refém, que agita os médicos e a todos os que compõem a cena onde a dor e sofrimento permeiam os atores, acionando os seus próprios medos, nossos próprios medos, nossos, dos leitores também.
Descrições de uma sociedade que ainda em nossos dias guarda similaridade de valores e condutas nem sempre tão morais e éticas. “A descrição de uma aldeia é a descrição do mundo”.
“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.
Liev Tolstói
Há uma confluência de temas nas duas leituras principalmente dentro da temática morte. Cada um a descreve dentro do imaginário proposto intencionalmente pelo autor.
Em FAHRENHEIT 451, pág. 145, “Os outros morrem. Eu continuo”.
Em Ivan Ilitch, pág. 9, já no início, “Aí está, morreu: e eu não”. Um espelho onde alegremente se contempla que, felizmente, a morte é a do outro, não a minha, e num átimo de pura defesa inconsciente, nega-se o evento morte para si próprio, como se negando afastaríamos sua aparição para um tempo incerto, um horizonte longíguo, ledo engano.
A morte é sempre a do outro.
A morte é um fenômeno do cotidiano, mas vemos sempre a morte como a morte do outro. Os outros morrem e eu ainda não. A minha morte, eu penso amanhã. Esquivamos-nos da possibilidade da singularizarão da morte.
Pensamos na morte somente no seu limiar e aí que está o perigo, talvez falte tempo para uma reavaliação da vida vivida, da compreensão do que realmente foi nossa existência.
O sofrimento maior impingido ao moribundo não é a dor física, está já de grande magnitude, mas a dor moral, a solidão, a mentira dos que o rodeiam. O ser humano clama por verdade, por mais dura que seja ela é única, enquanto a mentira tem muitas facetas. Em quem acreditar? Mas preciso acreditar afinal a vida é minha, o tempo restante é meu, sou eu a deliberar o que fazer deste tempo incerto, mas que se finda com minha morte. Através da mentira rouba-se um tempo de vida que diz respeito ao moribundo, somente a ele e aos que fazem parte deste cenário, ou melhor, aos que se ariscam a conviver com sua dor, sua tristeza e a impotência.
A Mentira é uma falácia, o paciente melhor que ninguém sabe que algo diferente está acontecendo e o que ele mais precisa nesse momento é confiar, quando se confia o medo desaparece, mas no texto a mentira é sustentada pela “decência”, a mesma que servira para dissimular tantos outros feitos durante a vida. As várias “mortes” simbólicas em vida.
Seria um tema banal se não fosse a exuberância literária de Tostói, que constrói uma narrativa densa e faz eclodir nos leitores nossos maiores medos, da solidão, do envelhecimento, da dependência, do sofrimento e da morte, assuntos rechaçados quando se tem jovialidade, vigor, alegria de vida, saúde.
O mujique é autentico para ele a vida é simples, motivo pelo qual ele surpreende o doente, pois a vida e a morte são conceitos já entendidos e assimilados como naturais. “O seu caso é de doença”, pág. 54. Ele legaliza a situação, o cenário onde a indecência, a sujeira, o mau cheiro, a feiura se instalava. O sofrimento para Ivan Ilitch não era só físico – a dor – mas moral.
Outro tema abordado que permanece atual é a relação Médico X Paciente dentro de uma hierarquia sem empatia. Pág. 38, perguntas “inconvenientes”. Infelizmente ainda encontramos nos dias atuais essa distancia entre o médico e o paciente.
Outro tema é o papel feminino nos dois livros. Mulheres fúteis, uniões sem um sentimento operante de real valor, de unicidade, de cumplicidade, uma convivência teatral, um “suportar” a convivência familiar.
A maior lição que pude tirar desta releitura após dez anos é continuar a trabalhar a minha morte, me preparar para ela, não com angustia, mas com serenidade, o processo de morrer de Ivan Ilitch, nos mostra que o realmente tememos não é a morte, pois ela é uma libertação em todos os sentidos, mas o sofrimento e os medos que a antecedem.
“E a morte? Onde está?”
Procurou o seu habitual medo da morte e não o encontrou. Onde ela está? Que morte? Não havia nenhum medo, porque também a morte não existia.
Em lugar da morte, havia luz.
Se conseguíssemos abstrair a expressão maior deste final de novela, acreditando ser realmente essa libertação nosso derradeiro fim, talvez víssemos a morte mais como uma amiga, uma conselheira a nos mostrar a grandiosidade da vida que deve ser vivida de forma mais plena, valorosa e autêntica.
O magnífico artista Michelangelo expressou bem ao dizer: “Todo pintor pinta a si mesmo”. Ao afirmar isso, a percepção é de que todo artista também se coloca na sua obra. Naturalmente a obsessão de Tolstói se refletia em sua obra. Lê-se através do testemunho de seus filhos que, “Embora durante trinta e cinco anos não deixasse de falar um só dia na morte, meu pai não a desejava, temia-a e fazia de tudo para adiá-la”.
Vou finalizar minha experiência de leitura relatando uma grata surpresa que aconteceu na data de hoje, 30 de outubro. Não ousei macular meu livro com anotações, grifos, dobras de página, afinal eu o havia ganhado do meu chefe na disciplina de Cuidados Paliativos como presente de aniversário, praticamente um documento histórico. Ao comentar esse fato em aula, uma das colegas que havia comprado o livro sem se dar conta que já o tinha, sensibilizou-se com meu depoimento e me presenteou com o livro a mais que havia adquirido. Agora tenho meu livro livre para manusear, grifar, marcar. Fecho meu primeiro LabHum com chave de ouro, ansiosa pelo próximo, tendo feito não somente novas leituras e releituras mas ampliado horizontes e tecido novas amizades.
A pluralidade de vozes que se desvela no LabHum faz construir um discurso em narrativas através dos olhares múltiplos dos alunos, uma percepção epistemológica sobre a obra selecionada.
Agradeço aos professores Maria Silvia e Licurgo que souberam, também magistralmente, nos acompanhar nessas leituras conduzindo-as a se fazerem maiores do que já são para cada um de nós. Aos colegas obrigado por partilharem seus pontos de vista e engrandecerem através deles meu olhar e minha percepção da realidade.
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