A Literatura Como Remédio
Categoria Ciências Humanas
Autor: Dante Gallian
Editora: Martin Claret
2017
Não há dúvida de que a leitura dos grandes clássicos da literatura universal seja um meio privilegiado para o nosso desenvolvimento intelectual e cultural. Mas e se nos dissessem que, além disso, esta leitura pode nos curar de muitas doenças da alma? Baseado numa experiência desenvolvida originalmente numa escola de medicina, este livro fala sobre um experimento (o Laboratório de Leitura) que, partindo da leitura e discussão coletiva dos clássicos, tem propiciado um poderoso efeito humanizador e terapêutico que vem transformando a vida de muitas pessoas.
Resenha:
Dante Gallian: “A literatura como remédio. Os clássicos e a saúde da alma”.
por Pablo González Blasco em 06-03-2019
O autor -grande amigo de muitos anos, parceiro em empreitadas humanistas na área da saúde- fez-me chegar um exemplar desta sua obra recente. “Veja se consegues comentar alguma coisa….”. O desafio não é comentar, mas tentar resumir uma experiência humanizadora -que chega em formato de livro- em algumas linhas.
Não é o primeiro amigo que me envia um livro da sua autoria esperando minha opinião. Entendo que é muito mais pela amizade do que por um possível oráculo para validar seu trabalho. Mesmo com essa consciência, obrigo-me a ler com atenção, tomando notas, por uma questão de justiça para corresponder à confiança depositada. E me vem á mente um comentário que Gregorio Marañón aponta no primeiro volume das suas Obras Completas, dedicado integralmente aos Prefácios que ele escreveu para livros de diversos autores. “Chega um momento na vida em que a gente somente consegue ler os livros que vai prefaciar”. Não é o meu caso, mas reconheço que os livros dos amigos e conhecidos vão tomando espaço nos meus escritos, o que muito me honra, ao tempo que também decide as prioridades do que podemos ler e escrever.
A apresentação do livro do Professor Dante, por conta de Leandro Karnal, é um aperitivo necessário antes de mergulhar na obra. Lá se adverte que o intuito do livro é mostrar como o uso da leitura dos clássicos serve para refletir socraticamente, conhecer-se e transformar o todo. “Literatura é remédio e resistência. Remédio porque nos restitui a saúde da reflexão; resistência porque é um bastião contra o senso comum, um ato revolucionário, um transformador”.
O autor nos centra no tema, logo no início do livro: A leitura é de fato um remédio antigo, inventado na aurora da humanidade, por vezes esquecido, sempre possível de se resgatar. Esquecido, porque as demandas da vida -o que parece importante, sendo talvez apenas urgente ou nem isso- nos afasta deste fortificante da alma. A literatura dota o homem moderno de uma visão que o leva para além das restrições da vida cotidiana. Nos liberta de nossas maneiras convencionais de pensar a vida -a nossa e a dos outros….nos conduzirá a querer mudar o mundo, mas quase sempre nos tornará mais sensíveis e mais sábios, em uma palavra, melhores.
Muito esclarecedor é o relato da experiência como professor de História da Cultura no início da sua carreira: comprovou que os alunos mais do que interessar-se por questões historiográficas, procuravam esse curso por motivos existenciais, buscavam na história respostas aos seus próprios dramas sociais e individuais. Uma luz que alerta sobre o poder transformador das humanidades, das histórias de vida, da leitura e da narrativa. Nada mais do que uma confirmação do que Werner Jaeger descreve no clássico Paideia: a formação do homem grego, as histórias, as leituras buscavam o efeito pedagógico do exemplo. Mobilizavam as forças estéticas da experiência humana.
E neste ponto, quando o autor nos lembra que a raiz grega para estética (aestesis) significa despertar, deixei correr a imaginação em ritmo de filosofia antropológica, médica. Aestesis é termo que os médicos usamos com frequência: anestesia, para indicar a perda de sensibilidade; ou as variações para menos (hipoestesia) ou para mais (hiperestesia), ou mesmo para sentir formigamentos, percepções raras (parestesias). Uma outra luz sobre o valor das humanidades que despertam a estética no ser humano, no médico: sem elas, estamos adormecidos para as percepções que realmente importam. A desumanização da medicina e da saúde é uma questão de percepção, de adormecimento, ou de percepções patológicas; impõe-se o remédio das humanidades para despertar o profissional da saúde para realidades perante as quais se encontra anestesiado. Agradeço ao Dante este aprendizado que me será de enorme utilidade nas batalhas da educação médica.
O livro discorre descrevendo os cenários de leitura grupal -laboratórios de leitura, verdadeiros experimentos com resultados surpreendentes e animadores. Não se trata de uma estratégia para que as pessoas melhorem sua performance, mas de uma educação humanista que, naturalmente, renderá seus efeitos duradouros. Trata-se de apresentar a Literatura in natura guardando-se do sequestro da literatura pela crítica como dizia Todorov. E confiar na história mitológica que conhecemos bem: Zeus, sabia que os homens adoecem de esquecimento, e deixam cair no olvido as coisas que realmente importam. Para ajuda-los nessa deficiência, criou as Musas, suas nove filhas inspiradoras das artes, encarregadas de recordar aos homens quem eles realmente são e mostrar o caminho do bem viver, isto é, viver de acordo com o seu próprio ethos, sua própria natureza.
As experiencias do laboratório de leitura são amplamente descritas, incluída a metodologia e os resultados, no quarto final do livro, convidando o leitor a repetir o experimento. Destaca-se a importância de compartilhar os afetos, os sentimentos, as ideias, os questionamentos, as intuições e as descobertas provocadas por uma experiência estética. Participar os outros dessas percepções -desse ser acordado pela experiência- é uma necessidade, uma alegria e um meio privilegiado de nos humanizarmos, de ampliar a esfera do nosso ser, de crescer em autoconhecimento. “Expressar não somente minha opinião, mas meus sentimentos, minha percepções….Um luxo” -comenta algum dos participantes. Enquanto outros pedem desculpas por se emocionar durante o relato. Com acerto comenta o autor: “A que ponto de desumanização chegamos quando nos sentimos obrigados a pedir desculpas por ter nos emocionado em público. Não é preciso pedir desculpas por sermos humanos”.
A leitura deste livro trouxe à memória momentos entranháveis de projetos conjuntos que desenvolvemos com o professor Dante. Aprendemos um com ou outro, e ambos com os alunos e participantes das nossas reuniões. Eu mesmo me aventurei na metodologia da catarse humanística com formato de histórias de leitura, recolhidas em publicação recente, Livros para a Vida. E continuamos aprendendo, e despertando para a sensibilidade –aestesis– imprescindíveis nas batalhas da humanização: na medicina, na saúde, e na vida!